1. Caverna

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"Eu queria contar uma coisa... Mas eu não contei isso para ninguém ainda. Não sei como as pessoas podem reagir."

A culpa é sempre a característica mais forte em todas as histórias que escuto aqui. Desde que decidi me tornar voluntária na Caverna, vejo a culpa se estampar dia após dia em rostos inocentes. Nada poderiam ter feito para evitar o que aconteceu. Nada. Não dependia delas. Mas elas acreditam que sim.

Aliás, C.A.V.E.R.N.A. é um nome mais que providencial para o Centro de Apoio às Vítimas de Estupro Regina Novaes Albuquerque. Por mais que o nome homenageie a primeira mulher a oferecer apoio psicológico a mulheres abusadas na cidade, Caverna soa muito mais pertinente. É como se cada uma dessas mulheres quisesse, se fosse possível, entrar numa caverna e ficar por lá até que a culpa lhes corroesse os ossos, até que as feridas pudessem ser todas saradas e a vida se tornasse mais fácil de encarar novamente.

Observo a moça parada em minha frente. As unhas roídas, com o esmalte vermelho descascando. Por um longo tempo, eu sei, elas nunca mais serão vermelhas. As calças serão largas e de moletom disforme, parceiras de camisetões surrados. Por um longo tempo, ela não vai querer chamar a atenção para si, para seu corpo, para sua feminilidade. Algo foi destroçado dentro dela, e não é tão simples arrumar a casa depois da invasão de um furacão.

"Ele era meu namorado. Devia cuidar de mim, certo? Mas não foi bem isso que ele fez."

Ela leva o dedo novamente à boca, morde o cantinho da unha. Depois, fica remoendo o pedacinho que se perde na boca.

"Ele trancou a porta do quarto, depois me abraçou e começou a me beijar. Eu correspondi – é normal beijar o namorado, certo? Quando ele enfiou a mão por baixo da minha blusa, eu puxei o pulso dele. Mas ele não parou. Disse que já estava na hora disso acontecer, que já fazia muito tempo que eu estava enrolando. Ele achava que eu devia isso a ele. Foi quando ele enfiou a mão por baixo da minha saia e arrancou a minha calcinha. Ainda posso sentir na coxa a dor do elástico se rompendo. Ele me jogou na cama e subiu em cima de mim. Ele era tão grande para alguém pequena como eu. Ele abriu o zíper da calça, tirou aquilo para fora. Quando ele se enfiou em mim, eu chorei. Ele estava me rasgando, mas o que doía mais nem era isso. Doía saber que ele não era confiável. Eu queria gritar, eu juro. Queria, sim. Mas eu tinha vergonha. Quem acreditaria em mim? Quem acreditaria que eu não queria aquilo, que eu não tinha provocado, e depois estava criando caso?"

As lágrimas se formam ao redor de seus cílios, mas não caem. Ela olha os próprios tênis surrados nos pés, enquanto os dedos de uma mão inquietos manipulam os dedos da outra.

"Se eu tivesse percebido as intenções dele... se eu tivesse ouvido a minha mãe... se eu não tivesse ido até a casa dele naquela tarde..."

Ela leva as mãos ao rosto e deságua. Aproximo-me mais dela, envolvo-a com um abraço que somente outra mulher poderia lhe oferecer no meio de toda essa fragilidade.

"Não é culpa sua. Nada disso foi culpa sua."

Ela chora agudo, ainda mais angustiada.

"O tempo é capaz de resolver essa dor. Pode parecer que não, mas isso passa, de um jeito ou de outro. Para todas nós."

Desde que comecei a trabalhar aqui, sei exatamente o que dizer para criar empatia com as vítimas, para fazer com que elas confiem em mim. No fundo, eu quero acreditar que o tempo cura todas as feridas. Nem sempre isso é possível. Algumas dores são alimentadas por monstros internos, que se escondem nas profundezas sombrias de nós mesmos. Nunca os tiramos de lá, porque é difícil limpar a sujeira no escuro.

"Quando isso aconteceu?"

"Semana passada."

Pergunto-lhe sobre os procedimentos, se ela procurou uma delegacia. Ela me olha como se eu estivesse propondo algum absurdo. Sugiro que ela vá à delegacia da mulher e depois procure um hospital, que há alguns exames que ela precisa fazer, alguns medicamentos que precisa tomar.

"Medicamentos? Para quê?"

"Doenças sexualmente transmissíveis, pílula do dia seguinte..."

Ela balança a cabeça, negando.

"Pílula do dia seguinte, não."

Olho para ela, intrigada. Ela lê a pergunta em meus olhos.

"Sou contra o aborto."

Respiro fundo.

"Tecnicamente, não é um aborto. A pílula do dia seguinte vai impedir, se houve fecundação, que o óvulo se prenda à parede do útero."

"Se houve fecundação, há vida. Não posso..."

Ela não termina a frase, apenas observa o vazio à sua direita. Está imaginando um futuro no qual ela precise, todos os dias, encarar seu terror nos olhos, alimentá-lo, banhá-lo, fazê-lo crescer. Essa é a pior decisão. Em silêncio, desejo que ela não tenha que passar por isso.

Quando ela se vai, um pouco mais confortável do que quando chegou, mas nem próximo do que alguém precisa para se dizer que está bem, desejo que ela tome a decisão certa. Mas não acredito que ela vá procurar a delegacia, nem mesmo o hospital. A maioria delas não o faz. Olho o relógio: nove e trinta e dois. Mais uma vez, estou atrasada.

Saio da Caverna, abrindo a bolsa e procurando pela chave do carro que está estacionado logo ali. O céu prateado da lua cheia clareia meus passos. Uma silhueta masculina surge detrás de um poste, sorrateira. Apresso meus passos, enquanto escuto seus pés caminharem firmes em minha direção. Ouço-os correr. O alarme duplo apita ao pressionar do meu polegar sobre o botão do controle remoto. Quando me viro, me deparo com a arma voltada para o meu rosto:

"Mãos pra cima, dona."

Levanto as mãos, com a alça da bolsa pressionando a dobrinha do meu cotovelo. Ele me encara com olhos determinados, analisando minha reação. Sou um cordeiro, e o lobo me espreita.

"A bolsa", ele indica.

Puxo-a com cuidado, encarando-o. Por uma fração de segundo, ele deixa de me olhar nos olhos para cobiçar seu objeto de desejo. É nesse momento que fica vulnerável. Todos estão vulneráveis quando deixam de controlar o ambiente para se focar no alvo desejado. A vida é assim: é preciso que cada um de nós controle os elementos ao nosso redor, em vez de focar apenas no pote de ouro no fim do destino. Num movimento rápido, enquanto uma mão lhe entrega a bolsa, a outra mão lhe agarra o pulso. Meu tronco gira, para prendê-lo numa alavanca com meu peso corporal. Seu braço entra imóvel sob minha axila, esticado, com a arma apontando para o chão. É como se a qualquer movimento meu, seu cotovelo fosse virar ao contrário. Ele é pego de surpresa. Solto a bolsa de couro, pesada, no chão. Nesse momento, ele precisa decidir se vai se defender do meu contra-ataque ou se vai tentar correr para longe de mim. Sou mais ágil que seu pensamento: com a habilidade de quem treinou o mesmo movimento por dezoito anos a fio, seguro a arma com a mão livre, girando-a em sentido contrário a seu próprio braço e ele não tem outra alternativa a não ser soltar a arma, ou seus dedos serão quebrados.

Apontando a arma para ele, exatamente como ele havia feito para mim no momento em que me abordou, faço um sinal para que ele se vá:

"Some", mando.

Ele parece temeroso, olha a bolsa caída a seus pés, no chão, como se analisasse a possibilidade de virar o jogo. Com o dedo, engatilho a arma e inclino de leve a cabeça. Ele se vira de costas e corre rumo ao cruzamento, se perdendo por trás do edifício da esquina.


***


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Em pele de cordeiroWhere stories live. Discover now