Capítulo 4

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"Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós.

Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós."(1)


Jaqueline

Eu já estava a ponto de desistir, quando Léo resolveu me chamar. Estava parada à porta de seu quarto, reunindo toda a coragem necessária para ouvir o que ele tinha para me dizer; se por acaso fosse para pedir que eu parasse com a invasão em seu quarto, não saberia mais quais armas usar. Foram longos quinze dias na mesma rotina. Eu entrava em seu quarto pontualmente às nove da manhã levando seu café com a dieta especial dada por uma nutricionista de minha confiança, abria as cortinas e janelas e perguntava se ele havia mudado de ideia. A resposta continuava sendo a mesma, um não enfático. Minha mãe voltava com seu almoço, única refeição aceita por ele; eu retornava no início da noite levando seu jantar e encontrava a bandeja do lanche da tarde intacta. Temendo que algum golpe de ar resfriasse seu corpo já fragilizado, eu fechava as janelas, enchia meu coração de esperança e perguntava mais uma vez se poderíamos começar seu tratamento no dia seguinte; sentia-me despedaçar a cada novo não recebido.

Nesse período, o processo contra Léo correu rapidamente e as investigações já estavam quase concluídas. Um fator alarmante aconteceu quando o resultado de seus exames toxicológicos realizados sem o consentimento da família, no dia do acidente, acusou um traço de uma droga similar ao exctasy em seu organismo, agravando sua situação perante a justiça e jogando ainda mais holofotes da impressa no caso que parecia nunca ser esquecido.

Havia horas em que eu até agradecia por Léo se encontrar acamado, pois a população estava sendo impiedosa em seu julgamento. Os muros da mansão onde vivíamos estavam sendo constantemente pichados com a palavra "assassino" e o senhor Leônidas teve até que reforçar a segurança da casa por causa das ameaças que a família vinha recebendo.

Minha mãe estava muito assustada com toda essa repercussão, temendo ser descoberta. Apesar de já terem se passado vinte anos desde que saímos fugidas de nossa terra natal, ela ainda se apavorava com a possibilidade de sermos encontradas por seu ex-marido, meu padrasto.

Quando eu tinha apenas cinco anos de idade, partimos de Itumbiara, cidade do interior de Goiás, fugindo sem destino. Dona Laura tomou essa atitude após desconfiar de seu marido e pegá-lo no flagra bolinando sua filha, no caso, eu.

Eu já vinha sofrendo abusos da parte dele há muito tempo, mas, por ser muito criança, somente tinha noção de que aquilo era errado quando ele me ameaçava, dizendo que, se eu contasse para alguém, machucaria minha mãe. Como ele sempre batia nela, nunca duvidei de sua palavra.

Não era sempre que ele aparecia, geralmente era na calada da noite, quando eu estava dormindo, e ele chegava bêbado, vindo das madrugadas de jogatinas.

Mário era um conceituado comerciante da cidade. Filho de fazendeiro, duplicou a fortuna de sua família fazendo empréstimos para a cidade toda. Apesar de seu ramo de agiotagem, era estimado por todos e venerado pelas generosas doações à prefeitura. Até a pobre da minha mãe acreditou em suas falsas boas ações. Quando seu marido, meu pai, foi assassinado brutalmente na porta de nossa casa por um homem mascarado, deixando-a viúva com uma filha de dois anos, ele cuidou de tudo, pagou o enterro e nos acolheu. Pouco tempo depois, assumiu publicamente minha mãe como sua esposa, e ela, com medo de passar fome e grata por tudo que havia sido feito por nós, menos de cinco meses após ter enterrado meu pai, casou-se com Mário mesmo não o amando como amou seu primeiro esposo.

A primeira surra foi ainda na lua de mel. Muito inocente, mamãe atribuiu o fato à noite de bebedeiras. Apanhou durante um ano, sempre arrumando desculpas. Ela também se culpava por fazer as coisas errado, depois começou a apanhar pela janta atrasada, o feijão salgado, o arroz insonso... até perceber que Mário tinha índole ruim. Acabou pedindo ajuda ao padre da cidade, e ele apenas a aconselhou a rezar mais e ser submissa ao marido. Minha mãe tentou por mais tempo, mesmo sendo vítima constante, ainda com medo de ficar desabrigada com uma filha pequena, pois não tinha outros familiares. Levou uma surra que quase a matou na noite de Natal. Nesse dia, ela temeu pela nossa segurança e procurou o delegado da cidade, que ligou para o Mário ir buscá-la. O maldito nos ameaçou de morte, por isso ela resolveu se calar.

Amor Abstrato - DEGUSTAÇÃOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora