"Primeiro dia na enfermaria: paciente psicótico agudizado, com ideação suicida e delírios de negação do eu, em franca agitação psicomotora, transferido do PS após quarenta e oito horas de observação. Acomodado no 104. Contenção padrão no leito. Pouca resposta à medicação oral; prescrito medicação endovenosa - Fenobarbital. Paciente sedou por quase três horas. No entanto parou de gritar."

          "Segundo dia na enfermaria: designado para R1 Bernardo."

          _ Agora isso vai ficar interessante - sussurrei para mim mesmo, após um longo gole de café. O pacote de cream-crackers estava na metade.

          "Dirijo-me ao 104 para anamnese do paciente; o mesmo se encontrava pendurado na claraboia do quarto, arranhando os vidros a ponto de arrancar as unhas do indicador e do dedo médio da mão direita; oriento enfermagem a retirá-lo e contê-lo em seu leito. Doutor Saldanha sugere transferência para o isolamento 302; acato. Prescrevo curativos nas mãos após contenção e Fenobarbital oral a cada seis horas. Inicio antipsicótico atípico Olanzapina por sugestão da preceptoria."

          Mergulho nas anotações do residente; relato sucinto, com descrição precisa dos sintomas: humor deprimido, com ideação frequente de suicídio; durante a entrevista, o paciente teria se acalmado, parando de gritar e ficando apenas chorando. Bernardo descreve o pensamento do paciente como organizado e bem-estruturado, sem indícios de lentificação - o que não se esperaria de um deprimido clássico - porém com conteúdo delirante que ele também classificou como nihilista: crença de que não poderia morrer, ainda que tentasse o suicídio, pois acreditava que seu corpo estaria "amaldiçoado"; acrescentou ainda delírios místicos: o paciente alegava que havia sido castigado por Deus, tendo sido "banido do Paraíso".

          Nessa parte que o relato do primeiro-anista da residência começa a ficar confuso. Relatos vagos sobre a história pregressa do paciente, alegações de que havia ocorrido um "despertar", e que a realidade seria uma ilusão. Um haikai escrito às pressas num canto da folha: "será que sou eu sonhando que sou uma borboleta, ou uma borboleta sonhando que sou eu?". E a última anotação do residente foi a mais estranha de todas: "devo me reencontrar com Deus; ser uno com o Universo".

          Lembrei-me do que Toninha disse sobre Bernardo: meio hippie, usava doses baixas das medicações prescritas para saber quais os efeitos delas. Imaginei que talvez fosse usuário de drogas, e que finalmente a psicose se manifestara no médico. Do fundo da memória surgiu a lembrança de um cara da minha turma de faculdade; chamavam ele de "Locão" - vivia sempre sob efeito de alguma droga (ora maconha, ora cocaína, ora álcool). Não durou muito tempo na faculdade de medicina, sendo internado num manicômio logo no terceiro ano, quando apresentou um surto psicótico e correu pelado no meio do pátio da faculdade gritando que era vampiro. "Triste" - pensei - "que aqueles que estudam para salvar vidas acabem destruindo a própria com as drogas. Não me conformo como ainda tem quem defenda esse tipo de coisa".

          Fui dar um novo gole de café e percebi a xícara vazia. Levantei-me para preparar mais uma das viciantes cápsulas, e enquanto aguardava a cafeteira emitir seu característico apito, espreguicei meu corpo, esticando os braços acima da cabeça, com os dedos das mãos entrelaçados. Senti uma fisgada nas costas, e uma leve cãibra me atingiu na musculatura que corria paralela à coluna, na altura das escápulas. "A velhice cobrando seu preço" - lastimei, apesar de ter somente quarenta anos. "tenho que tomar vergonha na cara e começar a fazer exercícios".

          Reabastecido de cafeína, retomei a leitura do prontuário misterioso. Os registros seguiam, agora sob a responsabilidade da R2 Carla. Registros extremamente sucintos, lacônicos. Por vários dias apenas fez anotações metódicas sobre sinais vitais e resposta observada à medicação: efeitos colaterais pouco notados - apenas sedação noturna; pouca resposta terapêutica, com permanência do humor deprimido e da ideação delirante. Até um determinado dia, o sétimo desde que aquele paciente dera entrada na enfermaria; ela relatara que, durante a recreação dos pacientes, começaram a cantar uma música - não registrou qual, nem mesmo que tipo de música seria - e quase imediatamente o paciente começou a esmurrar a porta do isolamento; quando foi ver, o rapaz estava com um corte fundo na testa, sangrando bastante, e ainda assim golpeando o vidro blindado da escotilha da porta de metal. Ela teria entrado no isolamento com a enfermagem e contido o paciente; depois - procedimento de rotina - teria ficado no quarto para acalmá-lo e suturar o ferimento. E aí novamente as anotações ficam estranhas. De seu modo lacônico, a residente anotou:

Paciente 302Onde as histórias ganham vida. Descobre agora