III

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          Naquela manhã dormi mal; a curiosidade devorava minha alma como vermes corroendo a carne putrefata dos mortos. Como seria o tal paciente do quarto 302? O que o levara a seu ato desesperado de loucura? Por que estava trancafiado naquele isolamento há três anos? Por que motivos o diretor da psiquiatria o isolara daquele modo? 

          Após umas quatro horas de sono intermitente, desisti de rolar no colchão; levantei e decidi tomar um banho. Apesar da manhã quente do verão paulistano estar fervendo o ar matinal como o bafo do próprio demônio, deixei-me cozinhar sob a água quente do chuveiro por longos minutos. Como iria convencer o Saldanha a me deixar ler o prontuário? Pior: como fazê-lo me deixar entrevistar o PRÓPRIO paciente? Seria difícil. O diretor era um psiquiatra das antigas, um velho português turrão como uma mula. Era um primor de gentileza se você estivesse do lado de seus ideais, mas seria seu pior pesadelo se você contrariasse seus interesses. Eu o conhecera alguns anos antes; o velho Loester, meu eterno preceptor da residência, apresentara-me ao novo diretor em sua festa de despedida há alguns anos. Conversamos sobre diversos assuntos, mas quando Saldanha se afastou, meu antigo tutor me deu um conselho: que eu nunca cruzasse o caminho daquele homem. Ele havia derrubado um Secretário Municipal de Saúde apenas com sua obstinação e teimosia. Loester me avisara que seu substituto era uma cobra criada, com muitos amigos poderosos bancando suas costas largas. 

          Fechei o registro do chuveiro e tateei a porta de vidro temperado do box procurando, em meio a uma espessa nuvem de vapor, uma toalha para me enxugar. Comecei a esfregar o tecido nos cabelos enquanto saía do banheiro, e não percebi quando acertei a quina do criado mudo com os dedos do pé; a descarga elétrica percorreu todo o meu corpo, fazendo com que eu me lançasse sobre a cama enquanto esperava a dor parar de roer minha perna como um cão raivoso. Enquanto me contorcia com aquele formigamento agulhante, esbarrei novamente no pequeno móvel de cabeceira, derrubando as chaves do carro, produzindo um barulho metálico seco; ao me abaixar para pegar o molho, um sussurro divino preencheu minha mente. Tinha encontrado uma forma de ler o prontuário que eu tanto almejava. Mesmo que para isso eu tivesse que... quebrar as regras (e algumas leis no processo... mas não se faz omelete sem quebrar uns ovos). 

          Com ânimo renovado, rapidamente vesti minhas roupas e parti; iria almoçar fora naquele dia... num restaurante self-service simples de um mercado próximo - algo que não fazia desde meus tempos de residente... Mas não era a qualidade da comida barata e popular que me atraiu àquele estabelecimento, e sim o chaveiro instalado num quiosque na calçada à sua frente. 

          _ Bom dia - aproximei-me da jovem atendente do quiosque, com um sorriso sincero - Gostaria de saber se poderia me ajudar.

          A moça mal dirigiu seu olhar em minha direção; estava absorta em sua leitura frívola de uma revista de fofoca sobre sub-celebridades. 

          _ Eu perdi as chaves do meu arquivo - insisti, apesar da má-vontade da atendente - Queria saber se vocês poderiam me vender uma chave mestra ou algo assim até eu poder trocar a fechadura?

          Um senhor baixo, de uns cinquenta anos, pele queimada de sol e uma respeitável barriga de chopp surgiu por trás do balcão; estava abaixado, conferindo os cadeados à venda, e eu mal o percebera. O homem fitou-me no fundo dos olhos, e deu uma boa gargalhada.

          _ Ô dotô! - o chaveiro tinha um sorriso largo e contagiante, apesar da falta de um dos dentes caninos superiores - Nóis troca os miolo pro sinhô, sai mais barato. Pudemo agendá a visita.

          _ Entendo... mas eu preciso acessar meu arquivo agora. Sou médico, sabe? Preciso acessar os prontuários dos pacientes durante as consultas. Além disso, são informações sigilosas, não posso correr o risco de que uma pessoa estranha os veja... Segredo médico, entende?

Paciente 302Onde as histórias ganham vida. Descobre agora