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          Mal percebi que demoraria a pegar no sono naquela manhã; estava ansioso por ler o prontuário do misterioso paciente 302. O que havia de tão especial nele? Por quê o Saldanha isolou aquele caso? Seria um parente do diretor? Embora a curiosidade corroesse meu espírito, o cansaço me impedia de prestar atenção, então tentei dormir. Depois de um longo período rolando sob os lençóis, mesmo no conforto do ar-condicionado, consegui descansar um pouco, de modo superficial. Em meio à imagens aleatórias do inconsciente, acabei sonhando com a tal moça do muro do hospital; via-a andando sobre o que parecia ser uma imagem translúcida do mesmo muro, agora envolta em uma neblina; um súbito facho de luz atinge a mulher, resplandecendo seus cabelos num tom luminoso de cobre, e sua voz pareceu preencher todo aquele espaço onírico. tentei me aproximar da moça, e uma forte lufada de ar atingiu meu rosto, fazendo com que fechasse meus olhos. Quando voltei a enxergar, grandes penas de um condor branco pareceram cair suavemente do céu. Acordei assustado após esse estranho sonho. A imagem de um condor me veio à mente, e procurei rapidamente no buscador da internet do celular imagens de condores brancos - e para minha surpresa, achei uma única imagem de uma dessas aves majestosas portando um raro albinismo.

          Depois de um bom banho morno, munido de uma grande xícara de café de cápsula - adquiri um estranho apreço pelo sabor artificial e pasteurizado daquela maquininha cara - e um pacote de cream-cracker, lancei-me sedento sobre as fotocópias do prontuário objeto de meu desejo. Apesar de escrito a várias mãos, em sua maioria as horrendas caligrafias médicas me eram legíveis. Divaguei por alguns instantes sobre o fato das letras de nós médicos serem tão ruins - geralmente explicada pela afobada necessidade de registrar grandes quantidades de dados em tempo tão exíguo quanto o de uma consulta. Com um rápido movimento de cabeça, dissolvi a divagação frívola e concentrei-me no arquivo. "Força, foco, fé, como gemem os marombas" - pensei.

          "Nome: Lúcio

           Sobrenome: desconhecido

          Procedência: desconhecida

          Endereço/ contatos familiares: desconhecidos."

          "Que diabos" - pensei - "Nenhum dado pessoal? Em três anos de internação? Demitiram as assistentes sociais do Mandaqui e eu não estou sabendo? Mas que serviço porco!..."

         "Paciente masculino, caucasiano, cabelos negros, olhos azuis, deu entrada na emergência contido na maca da ambulância, em franca agitação psicomotora; segundo o serviço de resgate, teria tentado suicídio jogando-se do sexto andar de um edifício residencial das imediações; apresentava vestes rasgadas e sujas de sangue e restos de cimento da calçada onde caiu, porém ao exame físico não apresentava sinais de lesões, fraturas ou hematomas".

          _ O QUÊ? - exclamei, inconformado - Cacete, só tem incapaz na emergência! Se o cara tivesse caído do sexto andar teria pelo menos uma perna quebrada! 

          "Ele deve ter dito que QUERIA se jogar e foi CONTIDO ANTES de pular" - pensei, sempre me deixando guiar pelo puro pensamento lógico. Percebi que a incapacidade das pessoas de pensar de modo racional, deixando-se sempre levar pelas emoções imediatistas, era algo que constantemente me irritava. "É por isso que esse país sempre leva pau nos testes internacionais de educação" - lastimei.

          "Segundo dia de internação na emergência: paciente ainda apresenta intensa agitação psicomotora; tenta a todo momento se soltar da contenção. Medicado diversas vezes com Clorpromazina e Midazolam intramuscular, sem sucesso. Importante delírio nihilista."

          _ Ok, gênio do PS, delírio nihilista... QUAL? - ah, os velhos vícios da emergência. Ausência e descrição dos sintomas; se eu tivesse feito isso durante a residência, Loester teria me feito copiar o manual de psicopatologia À MÃO - todas as TREZENTAS E NOVENTA E DUAS páginas, até aprender a fazer uma anamnese.

Paciente 302Onde as histórias ganham vida. Descobre agora