Capítulo Três - O Povo Branco

1.9K 224 18
                                    

    A viagem para sabe-se lá onde foi o mais desconfortável que poderia ser para Malika. O navio fedia, o clima só fazia esfriar, os dias eram tediosos e as noites assustadoras e s homens faziam questão de provocá-la o tempo todo, principalmente tentando puxar seu hijab fora da cabeça. Se estes pagãos queriam ser totalmente desrespeitosos a deus o problema era deles! Mas ela não podia aceitar que eles fizessem o mesmo com ela. Por isso, em uma determinada ocasião sacou o punhal e cortou o braço de um deles quando o mesmo tentou desnudar sua cabeça. O homem ficara furioso e lhe acertara o rosto com um tapa forte, o que ocasionou a ira do que a havia sequestrado. Os dois nem mesmo trocaram palavras e puseram-se a rolar pelo apertado espaço da embarcação com todos os outros gritando como animais agitados. A confusão durou alguns minutos com os dois trocando socos e cusparadas até que simplesmente parou. Um tempo depois pareceu nunca ter ocorrido. Eles realmente se assemelhavam a bichos.

   Ela não sabia ao certo quanto tempo havia passado, mas foi bastante quando eles começaram a se agitar de forma incomum, mesmo para os padrões deles. À essa altura Malika já conseguia distinguir algumas expressões deles e agora estavam claramente regojizando. Já a tempo: Não aguentava mais o cheiro daquele local que com certeza havia se entranhado nela. Precisava de um banho urgente e, apesar de não ter sido mais importunada durante a viagem não suportava a ideia de ficar trancafiada mais nem um minuto ali dentro desarmada, já que seu punhal havia sido atirado ao mar no mesmo dia em que fora descoberto.

 O homem que a capturara, Bjorn, a agarrara pelo braço, fazendo com que se levantasse e a arrastou para fora, junto com todos os outros. Seus olhos doeram com a exposição a luz do dia que, convenhamos, não estava tão iluminado assim. Estavam num pequeno ancoradouro construído numa praia pedregosa. Pequenos seixos no lugar de areia. A praia dava para uma vilazinha aparentemente humilde. Mas o que mais a surpreendeu foi a enorme concentração de árvores que se estendia pelas montanhas e além. Malika nunca havia visto tanto verde em sua vida! E nem tantas pessoas diferentes e ao mesmo tempo iguais. Uma imensa quantidade de pessoas altas e robustas, de pele branca e cabelos que iam de um tom quase branco, passando por amarelo e chegando a um alaranjado vivo. A maioria tinha olhos azuis, mas haviam alguns cinzas, verdes e uma pequena quantidade de castanhos também. As mulheres ostentavam longas madeixas à mostra, sem pudor algum. Beijavam os homens que haviam chegado na frente de todos, com a normalidade de quem está apenas fazendo um cumprimento amigável.

 Tanto crianças quanto adultos observavam com curiosidade tanto ela quanto os outros prisioneiros que saíam do outro navio. Indira! Será que a amiga estaria lá? 

 Seu pai conseguira escapar, mas no meio da confusão não houve tempo para que ela mesma tivesse a chance. Seu pai entrara em desespero ao ver a pequena embarcação reservada para a filha ser destruída. O pobre Omar tentara se jogar nas águas do rio, mas foi impedidos por guardas e criados. Ela era apenas uma mulher, não tinha muita serventia para a hierarquia de sua cultura, então não valia o risco para ser resgatada.

 Mas ela estava feliz em saber que seu pai havia escapado e a possibilidade de se encontrar com Indira depois de tanto tempo reconfortou seu coração.

 Bjorn a puxou através da multidão que apenas observava, tão estupefatos quanto ela. Agora ela podia ver claramente que o homem tinha cabelos castanhos bem claros e, a luz natural, ganhavam reflexos avermelhados, como a casca seca de uma tâmara.

 Ele devolveu o olhar curioso dela com seu próprio, sempre sério e taciturno. Não havia tentado tocá-la em nenhum momento. Os boatos de que eles faziam escravos para vender deveriam ser reais e ela valeria mais intacta como estava.

 Todos os prisioneiros foram levados para uma espécie de curral do lado de fora de uma enorme construção redonda de madeira, onde alguns dos homens que participaram da expedição entraram, inclusive seu captor. Ela ficou ali, sentindo-se uma criatura exótica em exposição. A mercê dos olhares e risinhos daquela gente esquisita de sobrancelha sem cor.

***

    Bjorn estava ouvindo a contagem e divisão dos espólios que estava sendo feita na frente do arl. Como era tradição, os mais experientes puxavam a sessão da Thing * que resolveria quem ficaria com o que. Quando chegou a hora dos homens se manifestarem, afim de dizer se estavam de acordo com o que fora proposto ele mesmo não acreditou no que fez. Levantou sua mão e disse em alto em bom som:

- Eu abro mão de tudo o que for contabilizado se puder ficar com uma escrava para mim.

 Todos os homens pareceram surpresos e alguns deles já sabiam de quem se tratava. Abrir mão de dinheiro por uma mulher? Realmente parecia loucura, mas era algo que ele tinha dentro de seu coração e que não poderia ser modificado. O arl olhou em sua direção, pensativo.

- Deseja mesmo abrir mão do lucro coletivo por apenas uma cabeça escrava, filho de Aren?

 Ele olhou muito sério na direção do líder de sua vila e meneou a cabeça.

- É o que desejo, Arl Magnus.

- Pois bem, filho de Aren. Que assim seja feito. Tem o direito de escolher qualquer uma dentre as escravas e tomá-la para si.

 Bjorn assentiu. Desde sempre mostrara seu valor, assim caindo nas graças de arl Magnus. Sentiu sobre si o olhar venenoso de Lars. O homem parecia se incomodar mesmo com coisas triviais como esta.

 Ao final da reunião Ulrik foi até ele, sorridente como sempre.

- Mas que loucura, rapaz! Uma única escrava? Pretende tomá-la como amante?

- Eu não sei, Ulfrik. Na verdade nem sei por que fiz isso! Eu apenas...Me senti intrigado por ela, só isso. E também preciso de ajuda na casa, enquanto não arranjo uma esposa.

- Claro. E uma mulher que certamente era da realeza ou algo assim será de grande ajuda nos trabalhos caseiros. - o homem gargalhou. - Bem, preciso ir pra casa! Minhas esposas me aguardam e eu, a elas!

 O homem grande acenou e se foi, misturando-se a multidão que começava a se dissipar.

 Ele foi para frente do cercado que continha os prisioneiros e ficou admirando silenciosamente a menina. Ela estava abaixada ao lado da criada que tentara protegê-la na noite do ataque. Esta foi a primeira vez nesses meses que ele a vira chorar. E o fez como se ninguém pudesse ver ou julgar. Ele sentiu um estranho aperto no coração, como se fosse diretamente culpado pela tristeza dela. E isso doía.

- Vejo que saíram-se muito bem. A distribuição da pilhagem foi satisfatória?

 A voz doce e inconfundível de Vibeke se fez ouvida do lado de Bjorn, retirando-o de seu transe.

- Sim, foi muito satisfatória... - ele lhe sorriu.

- Então imagino que haja algum presente para uma garota especial? - ela comentou, ousada.

- Apenas se ela gostar de se relacionar com outras garotas. Mesmo assim não recomendo, ela pode morder!

 Ele fez sinal para que um dos guardas abrisse o cercado, entrando e puxando mais uma vez Malika, passando pela perplexa Vibeke, que apenas olhou a cena boquiaberta.

*Thing: Reunião democrática, parecida com uma assembléia, onde se discutiam os mais variados assuntos. Desde brigas de vizinhos até confissões de adultério e pedidos de execução.

A Estrangeira (Degustação)Where stories live. Discover now