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          Passei quase uma hora revendo as prescrições dos pacientes, após outras duas avaliando-os em seus leitos. As enfermeiras separavam as medicações em copos descartáveis, identificados com esparadrapos em que haviam escrito os nomes de cada interno. Clóvis havia subido até o terceiro andar para tentar - inutilmente - medicar o agitado do quarto 301. Todos os funcionários seguiam sua rotina de modo automático, quase robótico. Embora aquilo demonstrasse um plantão inicialmente tranquilo, a curiosidade corroía minhas entranhas, querendo compreender quem ou o que era aquele misterioso paciente no segundo quarto do terceiro andar. Todos realizavam seus afazeres de modo ritmadamente modorrento, em um silêncio estranho, ignorando completamente a existência daquele paciente - e essa rotina apática me afligia. O único som que se insinuava naqueles corredores, além dos esparsos gemidos lançados a esmo por um ou outro interno, era o ruído baixo e rascante do esfregão de Cidinha ao limpar o piso frio de revestimento plástico simulando granito.

          _ O "Exorcista" acabou de dormir - a voz trovejante de Clóvis rasgou o silêncio da sala de medicações, quebrando aquele ritmo lento e agoniante que me irritava. Esbocei um sorriso pelo apelido dado ao paciente; a velha tradição da enfermaria não mudara nada em quase vinte anos - apelidávamos os pacientes para que outros internos não soubesse sobre quem a equipe discutia. Os apelidos "irônicos" foram uma pequena maldade que eu tive o mórbido prazer de começar.

         _ Ele tomou algum dos remédios? - indagou Toninha, de modo automático.

         _ Só a Clorpromazina.

         _ Ao menos um dos antipsicóticos - intrometi. O silêncio e a curiosidade me tornavam impertinente.

         _ Ao menos isso - concordou a enfermeira-chefe.

         Aproveitei o momento daquelas breves palavras para cruzar olhares com a velha enfermeira; apesar de não nos vermos há anos, ela ainda se lembrava que aquilo significaria que eu não iria deixá-la em paz até saciar minha intriga com o "paciente proibido". Toninha deu de ombros, e após um longo e pesaroso suspiro, pediu-me que a seguisse até o consultório da enfermaria, uma pequena sala anexa ao corredor da recepção. Durante a curta caminhada, um silêncio sepulcral tomou toda a enfermaria; nem mesmo os pacientes pareceram respirar; o eco seco de nossos passos reverberava pelas paredes amareladas, até ser interrompido por um som harmônico. Parei por um breve instante ao lado de uma grande janela gradeada coberta por vidros foscos de um branco jateado, e por uma pequena fresta por onde invadia uma brisa amena da noite, pude ouvir aquela melodia. Parecia uma voz humana, feminina, solfejando acordes lançados ao luar.

         _ Queen - sussurrei. E me deixando levar pelo ritmo, fechei os olhos por um instante - "Who Wants To Live Forever".

          _ Disse alguma coisa, Doutor Júlio?

          A voz rouca da enfermeira-chefe me arrancou daquele breve momento de transe.

          _ Ahn... Não foi nada.

         O cantarolar havia desaparecido. Não parecia vir de nenhum dos quartos, mas de fora. Talvez alguma funcionária, provavelmente da vigilância do hospital, passara solfejando aquela música.

         "Pelo menos tem muito bom gosto" - pensei.

          Toninha sacou um calibroso molho de chaves de um dos bolsos de seu jaleco com dificuldade, e o aproximou de seus olhos tentando identificar a correta. Em poucos instantes suas mãos chacoalhavam com o tilintar metálico, e o estalido da fechadura se abrindo fez-se ouvir, baixo e seco. As longas lâmpadas fluorescentes paralelas tremeluziram antes de se firmarem acesas, emitindo um zumbido baixo vindo do reator antigo oculto no centro da luminária. A enfermeira puxou uma das cadeiras na frente da pequena escrivaninha de madeira estrategicamente posicionada ao lado da porta, e com um gesto de mãos indicou para que eu me sentasse atrás da mesa, como se eu fosse atendê-la. Tratei de encostar a porta, trancando um pequeno ferrolho de latão posicionado pouco acima da maçaneta, e acatei o gesto silencioso de minha colega.

Paciente 302Onde as histórias ganham vida. Descobre agora