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Há certos momentos em nossa vida que não entendemos de imediato. Ás vezes - como no meu caso - nunca os entendemos, embora a nossa mente insista em procurar as respostas. Eu não sei o que aconteceu naquele dia, nem como aconteceu, mas depois de tantos anos pensando sobre isso sem, no entanto, chegar a nenhuma conclusão plausível, começo a achar que talvez seja melhor que eu não saiba.

15 anos antes...

Eu estava escondido. De onde estava, mal dava para saber se ela já havia terminado a contagem e saído em nossa procura. Sempre soube me esconder bem. Minha família e eu morávamos perto de uma floresta e há muito havia me aventurado a encontrar todos os atalhos e esconderijos possíveis e imagináveis. A casa de barcos onde me encontrava ficava numa trilha apertada virando-se à direita. Como a trilha era comprida e as árvores da floresta eram grossas, não era possível ver a casa á distância. Na verdade, apesar de eu chamá-la de casa, era mais como um cômodo só com algumas prateleiras quebradas e duas bateiras de madeira com a tinta por descascar; uma virada para o outra. Havia um espaço entre as duas pelo qual, com um pouco de esforço, consegui atravessar e me enfiar ali dentro, a cabeça contra os joelhos, esperando.
Nada.
Eu podia imaginar Amélia, minha prima, dando voltas e mais voltas na floresta, se perguntando onde eu poderia estar. Será que ela já tinha achado os outros? Será que já era seguro sair? Eu meditava calmamente sobre isso enquanto, lá fora, o vento e as árvores cochichavam como se soubessem de um segredo que eu não sabia.
Nada ainda.
Eu já estava ficando cansado. A posição começava a me doer. A essa hora, pensei, ela já deve ter desistido de me procurar. Decidi que o melhor era voltar para casa. Estava me preparando para sair quando ouvi batidos na bateira. Amélia enfim, havia me encontrado. Saí de entre as bateiras, me espreguicei e fiquei de frente com esse alguém, que na verdade não era Amélia. Era o meu irmão, Fred.
— Belo esconderijo, mano — disse. Eu segurei o instinto de abraçá-lo e me limitei apenas a sorrir. Nós não nos víamos há tanto tempo e mesmo assim, cá estava ele, com as mesmas roupas que usava da última vez que eu o havia visto. Minha mãe, pensei, certamente ficaria tão feliz em vê-lo quanto eu, principalmente por ele ter aparecido para comemorar o meu aniversário de sete anos.
— Estou procurando o Rex — continuou — você o viu?
Rex era o nosso cachorro. Nós o havíamos encontrado abandonado na floresta e estava em nossa família desde então. Eu sabia que ele deveria estar por perto, pois sempre me seguia onde quer que eu fosse, mas era extremamente estranho o fato do meu irmão estar procurando por ele, já que o mesmo o havia mordido alguns anos atrás e, desde então, Fred tinha decidido que odiava cães.
— Vamos, eu te ajudo a procurar — disse eu. Talvez ele estivesse apenas com saudades do nosso cachorro e quisesse recompensá-lo por todos os anos em que desprezou a sua existência, ou talvez ele apenas quisesse brincar.
Andamos apenas por alguns minutos até encontrar Rex deitado na sombra de uma das árvores. Quando ele viu meu irmão, começou a latir raivosamente. Eu nunca o havia visto se comportar de forma semelhante.
— É o Fred — disse eu, acariciando-lhe os pelos — não se lembra dele, Rex?
Fred, que estava bem na nossa frente, empurrou-me para o lado e o segurou pelo colarinho. Quando percebi que ele retirava uma faca do bolso, já era tarde demais. Eu fiquei ali, imóvel de medo, assistindo a faca atravessar o meu cachorro, que nem teve tempo de se debater ou latir. Fechei os olhos com força na esperança de que, quando os abrisse, nada disso fosse real e ele viesse correndo e pulasse com força no meu colo para me lamber. Não adiantou. Rex não levantou e tampouco veio me lamber como outrora ele faria. E mais, Fred desaparecera. Não consegui pensar em mais nada a não ser colocar meu cachorro morto no colo e correr. Corri desesperadamente sem saber para onde ia. Corri com as lágrimas escorrendo de meus olhos. Meu irmão tinha finalmente conseguido me fazer odiá-lo. Nem percebi a presença de minha mãe até que esbarrei nela.
— Querido, estávamos tão preocupados. Ela me envolveu num abraço e suspirou — você sumiu por tanto tempo, e vejo que achou o Rex.
Seus olhos pousaram em mim por um instante, depois em Rex e então no sangue que cobria minhas mãos.
— Charlie, o que é isso? O que aconteceu?
Silêncio.
— Charlie, quem fez isso?
— Foi o Fred. Eu não... — eu não consegui salvá-lo.
— Fred? Que Fred?
— O meu irmão.
Eu nunca vou esquecer a cena de Rex morrendo imóvel, indefeso. Eu nunca vou esquecer-me de tê-lo levado morto em meu colo. Mas esse não é o pior. O pior é que eu nunca vou esquecer-me de quando a minha mãe me disse que não havia nenhum Fred ali. Não tinha como haver. Meu irmão tinha morrido há um ano.

Fim

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⏰ Last updated: Jan 19, 2017 ⏰

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FredWhere stories live. Discover now