Capítulo 2 - A mudança

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A mudança

Foi num dos últimos dias de dezembro, de um ano quente, quando tanajuras e cupins enchiam o ar dos finais de tarde, que o caminhão dos Kadishman parou do outro lado da rua, bem diante do quintal da minha casa. Naquela época, eu não me importava com o fato de ser o dia 30; eu não sabia que era o aniversário do Dimitri Kadishman. Na verdade, eu nem sabia que existia um sobrenome tão complicado assim de se escrever e pronunciar - aliás, um dia ele odiaria quando eu começasse a imitar o som de um espirro para dizer aquele nome da sua família: "Ka-ka-ka-Kadishman! Saúde!", eu brincava... Brincadeira de primeira infância, que um dia também ficaria para trás...

Mas, naquela tarde, eu nem sabia da existência de um Dimitri, no meio daquela mudança que estava prestes a ser descarregada. Tudo o que eu queria saber era quando aquelas imensas formigas de bumbum avantajado iam perder as asas e parar de se prender no meu cabelo, enquanto eu dava voltas velozes com a minha bicicleta de aro 10; que o meu Papai Noel tinha trazido, havia menos de uma semana. Mamãe logo faria duas grossas tranças no meu cabelo e as prenderia sob uma redinha, que ela usava na cozinha. Ainda assim, as formigas voadoras continuariam se batendo umas contra as outras e, quando encontrassem uma cabeça dando sopa ou uma roupa com botões mais frouxos, se agarrariam desesperadamente a ela, tentando entrar por onde pudessem; procurando um esconderijo ou uma toca, talvez.

Algumas vezes, antes da mamãe ter tido a brilhante ideia de colocar a redinha na minha cabeça, eu tinha corrido para dentro de casa aos berros. Sacudia a minha roupa e o meu cabelão; chorando, esperneando, jogando a bicicleta no chão. Era a horrível sensação daquelas várias patinhas escarafunchando os meus cachinhos. Ui! Arrepiei só de pensar na cena.

Papai mandava eu entrar; dizia que já ia ficar escuro; que já era hora de eu me banhar. Apontava para a minha roupa toda empoeirada e o suor que colava o meu cabelo na testa e nas orelhas, e que também juntava poeira em cordões cinzentos em volta do meu pescoço. Mas mamãe vinha e colocava a mão no ombro dele. Era a sua forma mágica de controlá-lo antes mesmo que eu insistisse e choramingasse por mais uma volta, e que ele perdesse a paciência, porque já tinha dado a sua opinião. E nada ofendia mais ao papai do que perceber que a sua opinião não era a melhor e a mais correta; aquela que seria prontamente acatada, sem contrariedade.

Então, mamãe colocava a mão suavemente no ombro dele e falava com voz estranhamente suave, algum argumento neutro; alguma coisa que ele podia ponderar; alguma ideia que ele mesmo teria tido. Ela sabia que o marido era um homem generoso e que se esforçava para ser justo; ela sabia que o único defeito dele era ser emocionalmente pouco amadurecido. Então, ela evitava o confronto pela emoção. Dava-lhe algum argumento para que ele ponderasse; oferecia alternativas com as quais ele podia fazer um exercício de justiça. E assim, conseguia o que queria. Bem, todos conseguíamos: ela evitava os atritos, ele ficava com a sensação de estar se tornando um homem cada vez melhor; cada vez mais ponderado e justo, e eu conseguia voltar para aquilo que eu quase tinha sido proibida de fazer. Por isso também, quando eu via mamãe se aproximar de papai e colocar a mão em seu ombro, suavemente, eu calava o meu choramingo. Eu sabia que em breve nós ouviríamos aquela voz doce que nos hipnotizava, e que logo faria os nossos nervos relaxarem. Nós diríamos 'sim' a qualquer pedido daquela mulher.

Aqueles PostaisWhere stories live. Discover now