IV - Confortável

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Rafael

Não preciso nem levantar a cabeça para saber que ela chegou, com aquele cheiro de maçãs verdes frescas que me faz salivar. Ontem aproveitei para fazer uma visita a um futuro cliente assim que Lizzie a chamou e não retornei para o escritório, hoje quando cheguei encontrei seu recado com erros pregado no meu computador.

Rafael,
Liz me dispenssou. Estou indo para casa.
Obg.
L.

Estava revirando aquele papel entre os dedos a alguns minutos, quando notei seu cheiro invadindo o ambiente, mas nem mesmo os profetas mais renomados da história seriam capazes de me preparar para a imagem que vi ao levantar os olhos, ela estava deslumbrante em calça social preta, justa nos lugares certos, botas de cano curto e uma jaqueta preta de motoqueiro, tudo complementado com cabelos bagunçados pelo capacete. Definitivamente essa mulher é um castigo para a minha sanidade mental. Ela sorriu despreocupadamente enquanto retirava a jaqueta e prendia o cabelo em um coque bagunçado, mas que nela ficou extremamente sexy, caminhou em direção da sua mesa e virou-se perguntando.

− Humm, está tudo bem com você? - Em seguida abriu uma pequena garrafa e sorveu diretamente do gargalo.

− Ah sim está. - Falei balançando a cabeça em uma tentativa de clarear as ideias. - Pronta para um novo dia, aliás o que faz aqui tão cedo?

− Ah, a Lizzie pediu que eu viesse mais cedo por um tempo para aprender sobre as demandas. - Ela estava nervosa, e o sorriso dos lábios não chegava aos seus olhos, parecia triste, mas não posso afirmar isso não a conhecendo. - É Rafael, eu preciso te contar uma coisa.

Não sou uma má pessoa, meus pais não me criaram para isso mas juro que nos instantes entre a última frase dela e a próxima eu desejei com todo o meu ser que ela me dissesse que não continuaria no emprego, porque assim eu poderia tê-la na minha cama ainda hoje e saciar esse desejo que grita. Ontem quando cheguei em casa fiz algo que nunca tinha feito antes, saí para me encontrar com a segunda mulher do dia, pesquei Alice entre os meus contatos. Fácil, gostoso e sem compromissos. Foi maravilhoso como sempre, mas novamente não foi suficiente porque vejamos já estou entrando em combustão mais outra vez.

− Senta aqui, diga. - Falei mostrando a cadeira a minha frente. - E pode me chamar de Rafa, é esquisito quando me chamam de Rafael. - Aviso.

− Certo, obrigada Rafa. – Disse enquanto se sentava - Eu nem sei por onde começar, mas a Katy me disse para te contar e eu preciso desse emprego e bom se você não souber a verdade sobre mim, eu provavelmente não terei um emprego por muito tempo. Eu tenho uma disfunção neurológica chamada dislexia, mas só descobri isso com treze anos de idade o que me atrapalhou muito. Essa disfunção faz com que eu tenha dificuldades de leitura e escrita, tornando todo e qualquer processo de aprendizado muito difícil. Eu não vou te dar uma aula sobre isso porque sei muito pouco, ninguém se preocupou em me tratar ou me auxiliar exceto minhas amigas que eram tão jovens quanto eu. - Assenti boquiaberto. - Com o tempo eu entendi que nunca conseguiria ler um livro e conhecer histórias das quais muitos falam, mas que posso aprender com bastante facilidade quando assisto vídeos de um determinado assunto. Por favor, me ajude! Nunca pedi ajuda antes, mas eu preciso deste emprego para mudar a minha vida, sair da casa da minha mãe ou eu não sei quem me tornarei.
Fiquei ali chocado e boquiaberto, querendo cruzar um limite e abraçá-la dizendo que tudo vai ficar bem porque eu estou aqui. Por baixo da camada de mulher fatal, forte e decidida que ela carrega existe uma garotinha assustada. Qual tipo de atrocidades ela vivenciou, quantos preconceitos ela enfrentou por não conseguir ler?

− Lydia, eu não sei como posso te ajudar. - Respirei fundo. - Mas eu vou tentar, hoje nós vamos visitar um cliente e vou te mostrar na prática o que analiso quando faço um projeto. Depois vou pesquisar vídeos na área e você passará dois dias assistindo. Posso imaginar que você prefere se comunicar oralmente via mensagens no celular certo? - Ela confirmou com um gesto. - Então, não sei se já utiliza, mas você pode fazer anotações com a voz.

Peguei meu celular e mostrei para ela o botão do microfone, onde você aperta ele capta sua voz e converte em textos.  Ela sorriu esperançosa e foi como se todo o universo ascendesse. Informei que teria de conversar com a Lizzie, Darcy e com a responsável pelo RH da empresa para que adequasse seu plano de saúde, a fim de atender suas necessidades. Ela comentou que não sabe muito a respeito e eu prometi buscar informações para ajudá-la Ninguém merece ser escravo do seu próprio cérebro e minha intuição inicial de que ela era esperta estava correta. Combinei de sairmos em meia hora para a visita e orientei que deixasse seu celular com bateria cheia para gravamos nossas conversas e ideias, assim ela poderia ouvir com calma no final do dia. 
Eu assumi como missão, fazer com que ela não se sentisse sozinha nisto, quero mostrar que estou junto com ela, para que ela possa confiar em mim para transformá-la em uma profissional de sucesso, passei uma vida enfrentando preconceito e auto rejeição e não permitiria que a linda moça com perfume de maçãs continuasse a sofrer com isso. Isso eu poderia fazer, ajudar.

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Só havia um único problema na viagem de carro até o cliente: Aqui trancado em um espaço minusculo sentido seu cheiro que atiçava todos os meus sentidos. Quanto mais fundo eu inspirava mais certeza eu tinha que já a conhecia, mas como é possível não me lembrar desta mulher? No caminho fiz um pequeno resumo de tudo que precisamos observar para elaborar um bom projeto. Explico-lhe sobre os públicos, os mercados e a importância de todos os funcionários de uma empresa saberem sobre a missão e a visão da mesma. Uso a própria P&P como exemplo e ela se mostra perspicaz fazendo as perguntas certas no tempo certo.

A viagem de quase cinquenta minutos passou rapidamente, Lydia mostrou-se uma companhia agradável e inteligente. Ela me contou sobre sua carreira de modelo fotográfica e sua paixão por motos e disse também que foi a primeira coisa que comprou quando passou a administrar seu próprio dinheiro. A escolha do veículo tem a ver com a sensação de liberdade que desperta, o que me deixou particularmente intrigado.

Estacionei e pedi que ficasse no carro para que eu pudesse dar-lhe um pequeno gesto de gentileza. Algo me diz que essa menina nunca teve isso. Abri a porta para que ela saísse e vi seu rosto corado, uma pena que não possa ver seus olhos sob os óculos escuros. Sinalizei para que me seguisse em direção aos escritórios que ficam em um anexo nos fundos da loja. O cliente de hoje é o dono de uma rede de artigos de praia e pretende expandir sua empresa com o lançamento de artigos de marca própria.

A visita durou até a hora do almoço e quando terminamos estávamos ambos famintos, sem nem perguntar nos levei ao restaurante onde sempre temos reuniões da empresa.  A comida era excelente massas de todos os tipos, um ambiente no qual você poderia realizar negócios, encontra-se com amigos ou ter um encontro romântico Lydia me surpreendeu comendo massa com vontade, normalmente beldades como ela comem saladinhas cheias de frescura.

− Nossa que delícia. - Disse enquanto comia com vontade – Muito obrigada, pelo almoço, mas principalmente pela aula prática. - Nunca tinha reparado que a boca dela era tão carnuda, como uma maçã suculenta. - Achei bem interessante a proposta da empresa, mas os funcionários não parecem muito envolvidos e nem estimulados em fazer parte dela.

− Por nada, já basta ter te deixado com fome ontem. - Dou uma risada envergonhada, o que está acontecendo comigo? - Também notei essa relutância, o próximo passo é agendar visitas nas lojas mais próximas e fazer entrevistas com os funcionários, ver se isso é uma coisa pontual da sede ou se e todas as lojas os funcionários não se envolvem muito. - Ela concordou balançando a cabeça. - Se for algo pontual pode ser que eles se sintam repelidos pela proximidade dos donos, se for um comportamento geral teremos que averiguar os motivos e formas de contorná-los. Isso normalmente envolve mais trabalho, mais projetos e mais dinheiro.

− Merda! – Ela resmunga atraindo meu olhar. - Sujei minha blusa. - Fala soltando uma gargalhada. - Entende, porque sempre preciso andar com uma blusa limpa?- Ela chocalhava  os braços inquieta, arrancando-me uma gargalhada sincera.

Fazia um bom tempo que não tinha uma refeição tão agradável, ela era engraçada, espirituosa, mas o que mais me surpreendeu foi sua falta de frescuras. Acho que ela também se sente confortável em minha presença, uma vez que me contou histórias de sua infância e de sua difícil vida escolar, notei que ela evita a falar sobre sua família, pois não citou seus pais em nenhum momento, mas citou os pais de Lizzie diversas vezes. Enquanto estávamos no carro ela recebeu uma ligação que a deixou visivelmente abalada, pois apertava a lateral do banco do carro com tanta força que os nós de seus dedos ficaram brancos. Notei que eu também segurava o volante com força, pois sentia-me incomodado com a situação dela, quem será essa pessoa capaz de desestabilizá-la tão abruptamente?
Continuamos a viagem em silêncio e ao entrarmos na empresa pedi que Lydia fosse estudar, procurando alguns vídeos na internet.  Eu fui diretamente ao escritório da Lizzie, conversar sobre a situação delicada e nossa nova funcionária. Bati na porta e esperei até ouvir seu típico "entra" e a encontrei aos berros no telefone, provavelmente com algum dos fornecedores do seu casamento que se aproxima. Aguardei que desligasse e soltasse seu suspiro cansado e não pude deixar de rir quando disse.
− Eu pedi tanto para o D., para que fugíssemos para Vegas. - Não segurei a gargalhada, Liz, se transformou em uma versão muito mais pilhada de si mesma, mas também infinitamente mais engraçada. Não que eu vá lhe dizer isso. - O que faz aqui criatura?
− Lydia.
− O que que tem?
− Descobri porque os relatórios dela são estranhos.
− Eu também! - Como assim eu também?
− E quando pretendia me contar?
− Não sabia que este assunto era tão importante para você Rafael. - Disse zombando de mim. - Mas, eu falaria para os coordenadores de equipe amanhã na nossa reunião semanal. Como ficou sabendo?
− Ela me disse. - Ela arregalou os olhos abismada.
− Como assim? Você dormiu com ela? - Aquilo me deixou chateado.
− Poxa, Liz! Não, eu não dormi com ela, eu só dormi com uma pessoa do trabalho e você sabe bem quem foi! E por sinal só fiz isso porque ELA apareceu na MINHA casa a noite louca por aquilo. - Perdi o controle. - Quer saber? Nos falamos amanhã na reunião de setor. - Saí batendo a porta.
O destino sempre nada sensato, fez com que eu desse de cara com Jéssica ao sair do escritório, esta parou diante de mim com cara de zombaria pronta para ouvir poucas e boas. Dizem que o amor é capaz de revelar o melhor e o pior de uma pessoa e é por isso que tenho tanta certeza de que a amo. Jess, me tira do sério apenas com aquela presença arrogante e despreocupada dela. A pior decisão que já tomei na vida foi a de aceitar seu jogo de sedução, deixando-me levar por aquele cabelo vermelho e corpo pequeno, e deixando-a entrar na minha casa, bêbada e cheia de desejo. E em todas as outras também. Ela nunca me levou a sério, sempre zombou de mim e fez com que todo o escritório soubesse que estávamos nos vendo. Eu completamente tolo fui deixando as amarras de anos de rejeição caírem e me entreguei à ela completamente, para que ela pisasse em mim se agarrando com outro na festa de final de ano do ano passado. Ninguém sequer veio me perguntar como me senti depois daquilo, apenas ouvi os sussurros pelos corredores e os olhares de compaixão sempre que passava.
Por um instante voltei para aqueles terríveis meses de invisibilidade, quando fui despertado pela sua voz doce e rouca.

− Tá estressadinho Rafael?
− Vá se lascar Jéssica, saí da minha frente também! - Falei contornando-a e seguindo em direção ao meu escritório, no qual encontrei uma sorridente Lydia que fez tudo magicamente voltar ao normal.

O que poderia ser bom, ou ainda pior.

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⏰ Last updated: Oct 11, 2018 ⏰

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