Era natal e diferente do que eu via na televisão, não estava nevando. Acho que é bom deixar claro isso, porque as pessoas, mesmo as que moram aqui no Brasil, esquecem que nosso natal é no verão. Aliás, e que verão! Dia 23 passou com 30ºC e, é lógico, dia 24 caiu um pé d'água. Mas mesmo assim, não deixou de ser um natal sensacional. Era o meio da tarde e eu estava na sala jogando cartas com um primo que viera passar na minha casa. Eu olhava pela janela e a paisagem de chuvarada parecia sem fim. Ganhei o jogo pela segunda vez antes de atender a porta.
— Sr. Antônio! – Disse, animado. – Bem-vindo, que bom que conseguiu vir mesmo nessa chuva.
O velhinho assentiu.
— Não foi fácil, mas a gente resolve. – E deu uma risadinha.
Logo minha mãe veio vê-lo e começou a apresentá-lo para todos que estavam em casa. Tio, tia, meu pai, um primo, outro primo, e "ah, esta é a namorada do Lucas" e vocês sabem como é. Perambulando pela casa com minha mãe, ele carregava uma sacola com uma caixa dentro. Quando finalmente o tive de volta, ele me puxou para um canto e entregou a sacola. Quando fui abrir para pegar o que tinha dentro, ele me parou.
— Faça isso depois. Guarde e mais tarde você abre. – Ele assentiu. – Que tal?
Eu dei de ombros e concordei.
Pouco depois de eu perder para o Sr. Antônio no mesmo jogo que jogara com meu primo, veio o jantar. Minha mãe como sempre tinha feito uma grande panelada de risoto italiano e meu pai assara o grande frango. E, infelizmente, minha tia trouxera o porco com passas – eu ainda tento entender por que as passas existem na comida. Mas, é família. A comida sem passas estava boa. Lembro-me de ter me empanturrado de risoto, purê de batata e frango e de ter rido muito do meu pai, que engasgou com as mesmas passas que eu criticara segundos antes. Também lembro muito bem de como tive que acudir o Sr. Antônio por que ele rira demais e começara a tossir. No final, o jantar tinha sido perfeito.
Sentamos todos na sala conversando enquanto meu primo mais novo encarava o relógio. Tínhamos uma tradição de nunca abrirmos os presentes antes da meia-noite e todos estavam secretamente ansiosos. Nick era só o que estava demonstrando. Sentado e encarando meu primo mais novo acompanhar o carro que jogava, antes de voltar a olhar o relógio, pensei em como sentia que o tempo era algo precioso. Não precisamos pensar muito para termos certeza disso. É um fato. E quando olhei para o Sr. Antônio cochilando enquanto as mulheres tagarelavam, percebi que talvez ele estivesse cansado do tempo. Cansado de cuidar das coisas todo dia, as mesmas coisas sem parar. Respirei fundo e encostei no sofá em alguns segundos a mais de reflexão.
Antes de meu primo gritar.
— É NATAL!! – Ele repetia isto enquanto pulava e acordava todos aqueles que não tinham pulado como o Sr. Antônio por causa do grito.
Todos se aproximaram da árvore alta e piscante e minha mãe fez o que sempre fazia nos natais: começou a delegar os presentes.
— Este é do Marcos. – Pegou um redondo. – Este é do Lucas! – E assim por diante, sempre sorrindo de ansiedade com aquela cara de: "O que será?!". Até que... – E esse é do Will.
E entregou um presente retangular e pesado. Quando olhei para o pacote e o papel de presente com o site de uma livraria, fiquei em dúvida se estava ou não feliz. Sorri para minha mãe e me apressei em abrir.
— Vade Mecum...! – Disse, um pouco desanimado. – Obrigada, mãe. É muito legal.
Eu tinha ido para a cidade justamente para fugir de tudo aquilo. E no meu natal, lá estava: Direito. Abracei minha mãe e sorri com gratidão. Eu sabia que ela pensou que seria um ótimo presente, visto que era algo caro e que eu sempre preciso atualizar. Assenti algumas vezes e segurei meu livro gigante enquanto encarava os presentes diferentes ao meu redor. Não é que eu não gostasse mais da minha faculdade, mas depois de quatro anos você meio que abraça toda oportunidade de não pensar sobre isso. É o mesmo quando em férias de trabalho. Você não quer pensar em trabalhar, quer só aproveitar cada segundinho de sua folga.
Suspirei e virei para o Sr. Antônio, puxando um pacotinho do meu bolso.
— Eu sei que não é muito... – Comecei. Ele me olhou com um grande sorriso.
— É mais que suficiente, William. – E pegou o pacotinho.
Ele o abriu com cuidado, como se fosse algo frágil, e isso meio que me deu uma confiança no meu presente. Senti uma real importância em mim mesmo. Ele abriu o pacotinho e tirou de lá o chaveiro prateado e dourado de metal em formato de chave antiga. Por um momento eu não soube se ele entendera o que eu quis mostrar, mas pelo modo que seu sorriso amansou e ele suspirou, soube que tinha alcançado o objetivo.
Era uma chave. E ambos sabíamos o que ela significava. Não vou mais fazer suspense para vocês que nada entenderam e explicarei. Não era uma chave que poderia ser usada de verdade, mas um símbolo representando tudo o que estávamos fazendo naquele verão. Impedindo uma loja de fechar, garantindo ótimos momentos para alguém que logo não estaria lá. E igualmente para aqueles que não veriam mais aquela lojinha cheia de sonhos aberta.
Lembro que ele me olhou e nossos olhos se encontraram e começamos a trocar tapinhas nas costas. Como aqueles filmes mudos em que não precisa falar para você entender o que está acontecendo. O momento durou muito pouco, na verdade, eu senti que foram dias, mas foram apenas alguns minutos.
E logo ficou para trás conforme mais alguns dias se passaram para o Ano Novo. E é claro que Sr. Antônio foi novamente convidado. Mas dessa vez ele não foi. Disse que precisava de um tempo sozinho e que queria pensar e respirar durante a virada de ano. Sentir o recomeço mais uma vez, dentro daquela lojinha com sua esposa. Eu não disse nada, só assenti e entendi.
Porém, esse velhinho ficou na minha cabeça a cada minuto mais próximo da meia-noite. Logo após todos começarem a gritar e festejar depois do 3... 2... 1... eu não aguentei mais me segurar em casa. Peguei um pedaço gigantesco do "Bolo de Ano Novo" que minha mãe sempre fazia e coloquei em um pote. Enfiei em uma sacola e saí com a minha bicicleta. Geralmente durava uns vinte minutos até chegar na lojinha, mas, com a quantidade de gente na rua, levei mais de trinta. Quando, enfim, cheguei, sorri por ver a luz acesa e saber que ele estava acordado.
Alguns dias antes Sr. Antônio tinha me emprestado uma cópia da chave então simplesmente entrei correndo e gritando um FELIZ ANO NOVO de estourar os pulmões. Dei de cara com a sala piscando com alguns enfeites de natal, mas o silêncio me incomodou. Olhei ao redor, procurando por ele, mas não parecia estar em lugar algum. Passei para o corredor e foi aí que senti meu coração pular e apertar e juro que doeu. No final do corredor tinha o quarto dele. E pela porta aberta podia ver seus pés.
— Sr. Antônio! – Gritei, jogando o bolo no chão e correndo.
Ele estava caído no chão, a testa machucada. Chequei sinais vitais, senti os olhos embaçarem e tentei pegar meu celular. Praguejei ao ver que na correria eu não o tinha trazido e corri até a sala para usar o telefone fixo dele. Digitei 193 com tanta rapidez que o telefone passou alguns segundos processando o que eu tinha pedido para ele. A ambulância demorou ainda dez minutos para chegar.
Pareceram horas, mas quando os paramédicos vieram socorrê-lo, parecia que eu que precisava de ajuda. Eu tremia tanto que demorei para me controlar o suficiente para contar como o achei e que horas. Levaram-no para o hospital, eu seguindo a ambulância de longe com minha bicicleta. Eu nunca corri tanto.
Pulei da bicicleta e tentei seguir a maca em movimento. Ouvi palavras de medicina misturadas e para mim tudo pareceu grego e muito pior do que poderia ser. Eu lembro que alguém me segurou, disse que eu precisava esperar. E no minuto seguinte, "acordei" na sala de espera, com minhas pernas batendo e com a cabeça girando. "E se ele falecer? O que eu faço?" pensei. Balancei a cabeça e pensei diferente: "O que ele gostaria que eu fizesse?". E então ficou muito claro. E me acalmei.
Demorou ainda uma hora antes de eu receber uma resposta. Aparentemente os médicos tinham passado a última meia hora tentando estabilizar a situação do Sr. Antônio, que tinha tido um ataque do coração. Mas ele estava vivo e provavelmente acordaria dali algumas horas. Eu assenti, surpreso por sentir minha visão embaçando, e tentei me acalmar. Respirei fundo e segui o médico até o quarto dele. Como só era permitido família, não tive vergonha alguma ao mentir que era seu neto.
Para mim ele era mais que um avô, de qualquer forma.
Ainda é.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Vida em um Verão
General Fiction#158 em Ficção Geral (26/11/2016) CONTO VENCEDOR DO CONCURSO #DesafiosNPD - Nov/2016 "Eu estava no colégio quando conheci aquele senhor. Era um velhinho ajeitado, já devia ter uns 70 anos naquela época. Era a alegria de qualquer jovem da rua 23. Com...