Fim de mais um ano, época de passar um tempo maior com a família, já que mortos não têm amigos. O Natal se aproximava, e como todo bom brasileiro, deixaram tudo para a última hora. Era um tal de comprar uma coisa aqui, ajeitar outra acolá, pensar em como acomodar as visitas que receberiam, uma zona.
Cinco anos se passaram, e algumas coisas mudaram. O irmão mais velho nem chegou a se formar, e já foi levado para a Europa. Desde que se foi, não voltou, embora mantivesse contato "sempre que possível", segundo ele dizia.
Dona Ana, depois do episódio com o filho mais novo, ficou um tempo desacreditada, mas agora ela tinha encontrado um "homem ungido de Deus", e passou a visitar a igreja do pastor Adevanir.
Seu Osmar estava mais tranquilo. Depois do período de seca que quase arruinou seu negócio anos atrás, as chuvas voltaram a ser regulares. Com as contas sob controle, passava mais tempo com a esposa e os filhos.
Vitinho agora não era só um terror em casa. Virou um pesadelo na escola. Como estudava de manhã, à tarde já chegava menos agitado, e dormia como um bebê durante a noite.
Nosso amigo também passou por mudanças. Concluiu o Ensino Médio, mas não tinha grandes aspirações. Uma névoa o impedia vislumbrar novas possibilidades, apesar da inquietação que o corroía por dentro. Ainda praticava o inglês, conversando esporadicamente com Natalie, que se casou com o antigo namorado. Eu tentava ajudar, dando dicas do que meu formado morto poderia fazer para ocupar o tempo, como ajudar o pai arrumar as tralhas no escritório.
– Filho, pega aquela caixa ali, do lado da escrivaninha.
– Tá bom pai!
– Meu garoto tá ficando forte, hein? Tá tomando aquele negócio lá, como é que fala? Ah, bomba! Tá tomando bomba, rapaz?
– Que nada! – respondeu, com um sorriso amarelo, só para não deixar o pai sem graça com a piadinha besta.
– Agora põe ela aqui e... JÁ VAI MULHER! Que merda! Sua mãe só sabe pedir, ajudar que é bom... Filho, vê lá o que sua mãe quer. – disse o pai, sem sequer olhar para ele.
– Cadê teu pai? – pergunta a mãe, surpresa ao ver o filho morto ao invés do marido.
– Ele tá meio enrolado lá no escritório, pediu pra eu vir ver o que a senhora queria.
– Aquele traste... Só pensa em papelada. Toma conta do teu irmão, senão ele destrói todos os presentes que comprei. Vou dar um jeito naquela bagunça que tá a cozinha.
– Mas mãe, não é mais fácil colocar os presentes na salinha dos fundos e trancar? Não tem como ele mexer lá!
– Sem mas, moleque, mania de me contrariar!
Tinha vezes que eu queria estar no lugar dele, muita gente ia escutar umas verdades. Nem vou comentar que achei a ideia ótima, afinal era muito mais "fácil" cuidar do irmão sozinho do que das duas coisas juntas. Mas como a mãe é mais orgulhosa e cabeça dura que tudo, ela não ia dar o braço a torcer justamente para um morto.
– Ela está certa, ele tem que obedecer a mãe.
– Escuta, Belzebu, não tem mais o que fazer além de me atazanar não?
– Meu dever é impedir que você acabe com a vida do pobre menino, com seus conselhos inconsequentes.
– Vida? A criatura é mais morta que um esqueleto e você quer que eu não faça nada?
– Depois não diga que eu não avisei, tá?
– Obrigado pelo conselho, 'senhora mi mi mi', agora desaparece!
YOU ARE READING
Meu Querido Morto
General FictionTenho certeza de que convive com um igualzinho a mim. Ou pelo menos parecido. E olha que legal, vai estar com ele pela sua vida toda! Sabe quando te dá uma vontade louca de fazer alguma coisa e você faz sem pensar muito? Ou você explode de raiva e...