Capítulo 2: Lar, doce lar

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Fim de mais um ano, época de passar um tempo maior com a família, já que mortos não têm amigos. O Natal se aproximava, e como todo bom brasileiro, deixaram tudo para a última hora. Era um tal de comprar uma coisa aqui, ajeitar outra acolá, pensar em como acomodar as visitas que receberiam, uma zona.

Cinco anos se passaram, e algumas coisas mudaram. O irmão mais velho nem chegou a se formar, e já foi levado para a Europa. Desde que se foi, não voltou, embora mantivesse contato "sempre que possível", segundo ele dizia.

Dona Ana, depois do episódio com o filho mais novo, ficou um tempo desacreditada, mas agora ela tinha encontrado um "homem ungido de Deus", e passou a visitar a igreja do pastor Adevanir.

Seu Osmar estava mais tranquilo. Depois do período de seca que quase arruinou seu negócio anos atrás, as chuvas voltaram a ser regulares. Com as contas sob controle, passava mais tempo com a esposa e os filhos.

Vitinho agora não era só um terror em casa. Virou um pesadelo na escola. Como estudava de manhã, à tarde já chegava menos agitado, e dormia como um bebê durante a noite.

Nosso amigo também passou por mudanças. Concluiu o Ensino Médio, mas não tinha grandes aspirações. Uma névoa o impedia vislumbrar novas possibilidades, apesar da inquietação que o corroía por dentro. Ainda praticava o inglês, conversando esporadicamente com Natalie, que se casou com o antigo namorado. Eu tentava ajudar, dando dicas do que meu formado morto poderia fazer para ocupar o tempo, como ajudar o pai arrumar as tralhas no escritório.

– Filho, pega aquela caixa ali, do lado da escrivaninha.

bom pai!

– Meu garoto ficando forte, hein? Tá tomando aquele negócio lá, como é que fala? Ah, bomba! Tá tomando bomba, rapaz?

– Que nada! – respondeu, com um sorriso amarelo, só para não deixar o pai sem graça com a piadinha besta.

– Agora põe ela aqui e... JÁ VAI MULHER! Que merda! Sua mãe só sabe pedir, ajudar que é bom... Filho, vê lá o que sua mãe quer. – disse o pai, sem sequer olhar para ele.

– Cadê teu pai? – pergunta a mãe, surpresa ao ver o filho morto ao invés do marido.

– Ele meio enrolado lá no escritório, pediu pra eu vir ver o que a senhora queria.

– Aquele traste... Só pensa em papelada. Toma conta do teu irmão, senão ele destrói todos os presentes que comprei. Vou dar um jeito naquela bagunça que a cozinha.

– Mas mãe, não é mais fácil colocar os presentes na salinha dos fundos e trancar? Não tem como ele mexer lá!

– Sem mas, moleque, mania de me contrariar!

Tinha vezes que eu queria estar no lugar dele, muita gente ia escutar umas verdades. Nem vou comentar que achei a ideia ótima, afinal era muito mais "fácil" cuidar do irmão sozinho do que das duas coisas juntas. Mas como a mãe é mais orgulhosa e cabeça dura que tudo, ela não ia dar o braço a torcer justamente para um morto.

Ela está certa, ele tem que obedecer a mãe.

Escuta, Belzebu, não tem mais o que fazer além de me atazanar não?

Meu dever é impedir que você acabe com a vida do pobre menino, com seus conselhos inconsequentes.

Vida? A criatura é mais morta que um esqueleto e você quer que eu não faça nada?

Depois não diga que eu não avisei, tá?

Obrigado pelo conselho, 'senhora mi mi mi', agora desaparece!

Meu Querido MortoWhere stories live. Discover now