Quando estávamos bem longe, finalmente paramos. Talvez estivéssemos seguros agora. Meu peito ardia com o ar entrando e saindo tão rápido e eu realmente precisava aliviar a garganta seca. Com certeza nunca corri tanto assim em toda a minha vida! Ajoelhei à margem do rio e bebi um pouco de água na minha mão antes de lavar o rosto, só então eu parei e notei que estava me sentindo tonta.

O dragão-humano me olhava horrorizado e perguntou numa voz tão profunda que chegou a me surpreender.

— O quê você fez?!

— Salvei sua vida. – Respondi ao me levantar e quase cair por causa da tontura que ficou ainda pior. Precisei sentar por um momento numa pedra grande ao lado do rio. Ele me olhou confuso por um segundo, mas logo a raiva voltou ao seu semblante.

— Você me transformou num deles! Num humano!

Pode uma coisa dessas? Eu o salvei da morte certa e ele ainda reclama!

— Preferia ter ficado lá pra morrer?

De repente, ele agarrou seu pescoço com o braço direito, o outro estava machucado no lugar em que a asa estava ferida.

— Eu estou falando? – Ele gritou. – Como posso estar falando na sua língua? O que você fez comigo?!

Seu tom era desesperado e não combinava com a voz profunda e grossa dele. Eu o puxei levemente para se sentar também, queria dar uma olhada no ferimento.

— Já disse, salvei sua vida. Eu te transformei em humano, mas isso é apenas temporário, logo voltará a sua forma original, não se preocupe.

— Mesmo? E não vou mais voltar a essa... forma?

— Só se você quiser. É assim que funciona, mas tem algumas regras.

— Regras?

— Sim. – Ergui a mão até o ferimento dele, tocando-o delicadamente. Ele se enrijeceu de susto, provavelmente surpreso por receber um toque gentil de uma humana. – Acho melhor cuidar disso primeiro...

Com a pouca luz proveniente da Lua, não dava para examinar muito bem o ferimento, mas pude ver uma mancha de um azul enegrecido cuja as bordas pareciam levemente amareladas, além de um corte ensanguentado que tive que lavar bem até que parasse de sangrar. Certamente doía bastante, tratei de tomar muito cuidado para não machucá-lo ainda mais.

— Você machucou muito sua asa. Foi na queda, certo?

— Sim.

— Você vai voltar a voar? – Pude sentir seu olhar acompanhando cada movimento meu ao tratá-lo.

— Em dois ou três dias.

— Que rápido! Dragões se recuperam bem, então...

— A propósito, humana, qual é o seu nome?

Levantei uma sobrancelha e levei o olhar do corte para os olhos dele. Ele estava confuso e com a expressão que tentava conter a dor. De fato, o corte era muito amplo e parecia fundo, só que não sei se daria para dar pontos, como isso funcionaria quando voltasse a ser dragão? Por sorte eu ainda tinha um pouco de unguento na bolsa que ajudaria a proteger o machucado. A pele humana era realmente muito mais sensível do que a de um dragão.

— Precisa falar assim? Parece até que "humana" é um xingamento.

— Não foi o que eu quis dizer...

— Meu nome é Selene. E o seu?

Ele parou por um momento, abaixando o olhar para o braço ferido. Será que ele tinha um nome?

Demorou alguns segundos até ele olhar para mim de novo.

— É Drake.

Assenti com um sorriso e enfaixei o braço dele da melhor maneira que pude, pois estava difícil de enxergar, estava muito escuro apesar da Lua cheia e brilhante no céu. Eu teria de lavar a minha capa agora ensanguentada.

— Como são aquelas regras que você mencionou?

Peguei o livro na minha bolsa e o abri na página correta. Eu sabia que havia regras, mas não lembrava de cor. Com dificuldade, li o texto.

— Você só pode trocar de forma uma vez a cada 24 horas, ou seja, uma vez por dia. O máximo que você pode ficar nessa forma é aproximadamente 20 horas. Quanto mais você fica nessa forma, mais você se acostuma. – Expliquei enquanto ele olhava intensamente para o livro e para mim.

— Magia? Pensei que os humanos tivessem banido isso há décadas. Talvez séculos.

Era por esse motivo que eu precisava manter segredo, por isso que sempre treinei ocultamente, longe de todos da vila. Desde que encontrei esse livro escondido nas coisas da minha mãe, eu me interessei em praticar a magia, porém, se descobrissem, nem sei o que poderiam fazer comigo. Antigamente, os feiticeiros eram sábios e respeitados, até o momento em que as coisas mudaram. Ninguém sabe ao certo o que aconteceu, mas começaram a banir a magia, todos os livros e conhecimentos deles foram queimados, assim como aqueles que os escreviam, liam e praticavam seu conteúdo. Estremeci ao pensar nisso.

— É segredo...

— Entendo... Obrigado por salvar a minha vida. – Drake fez uma pausa. – Mas... por que fez isso?

Sua pergunta me abalou, pois me trouxe de volta à realidade que a adrenalina me fez esquecer. Respirei fundo, mas não consegui conter lágrimas que se formaram nos meus olhos. Será que dava para ver que eu estava chorando? Ou que eu estivera chorando recentemente?

— Eu já perdi muita gente... Todos que eu conhecia e amava... Então decidi parar. Decidi que, se dependesse de mim, não deixaria ninguém mais morrer à toa. Nem mesmo um dragão como você.

Drake permaneceu sério e atento olhando pra mim.

— Acompanharei você, até salvar sua vida duas vezes em troca.

— Duas vezes?

— É que é tipo um Código de Honra entre os dragões. Quando alguém te faz um favor de bom grado, você deve dois. Um para ficarem iguais e outro por agradecimento. E, de qualquer forma, você arriscou sua vida duas vezes para me salvar, ao usar magia e por estar me salvando. Ao meu ver, poderiam ter te matado por esses motivos, não é?

— Sim... Mas não importa, não precisa fazer isso.

— Eu quero. A menos que repudie minha presença.

— Como eu poderia te repudiar? Nem te conheço direito.

— Então, para onde você vai?

Na verdade, nem eu mesma sabia, não tive tempo para pensar no assunto. Agora, mais calma, podia sentir algo diferente, um sentimento crescendo dentro de mim, que me impulsionava e dizia que eu precisava encontrar algo. Uma brisa suave veio do norte e fez meu cabelo comprido dançar na frente do rosto. Naquele momento, soube a resposta.

— Vamos para o norte.

Selene e o Dragão {Degustação}Onde as histórias ganham vida. Descobre agora