A guiei até a sala pensando no que fazer para passar o tempo até a luz voltar. Sentei no sofá puxando a coberta para ela sentar também.

- Você devia ser mais organizada sabia? - ela comentou olhando atentamente minha sala. - Mesmo com esse escuro dá para per... - Ela soltou um grito agudo pulando no meu colo rapidamente quando escutou um trovão lá fora.

- Calma... - segurei o riso passando a mão no cabelo dela. - Foi só um trovão, ele não entra aqui dentro, você está segura. - a abracei calmamente mexendo no cabelo dela.

- Por isso eu não queria ficar sozinha em casa. - Ela confessou baixo como se aquilo fosse um segredo. - Esse barulho da a impressão que o mundo tá acabando. Espero que o papai esteja bem.

- Garanto que ele está bem, bem melhor que você estava, dentro de um hospital com luz, porque hospitais tem energia reserva. - Falei  com raiva desse tal pai. -Eu não acho que você tenha idade para ficar sozinha.

   A observei dar de ombros enquanto me encarava e depois deitar-se no sofá.

    - Quer fazer alguma coisa? - perguntei sem jeito a olhando.

- Não precisa se preocupar em fazer o tempo passar. - ela falou em tom indiferente. - Só quero esperar o papai chegar.

- Você nunca passa um tempo com seu pai? - perguntei tentando disfarçar a curiosidade.

- Passo sim, alguns finais de semana vamos ao parque, outros na casa da titia e outros ficamos em casa vendo filme, ele não me abandona como você está pensando.

- Eu não disse que penso isso. - Neguei sem jeito comendo uma torrada toda de uma vez para disfarçar.

- Não é como se precisasse dizer. - Ela respondeu em um tom calmo me olhando. - Relaxa, não é a primeira a pensar isso. - ela sorriu educadamente. - Já até acostumei a responder, embora o papai fique irritado com essas perguntas.

- Eu imagino que ele realmente fique, deve ser difícil se esforçar tanto para criar uma filha e ainda ter que dar satisfação para os outros...- Falei vagamente e com sinceridade. - Mas é só ele não ligar e... - fui interrompida por batidas fortes e apressadas na porta.

- HANNA? - escutei uma voz masculina alta junto às batidas na porta. - Hanna? Você está ai?

  - Papai!  - Hanna exclamou enquanto pulava do sofá e corria indo abrir a porta. - Que demora! - Ela protestou enquanto se jogava no colo dele.

   Pronto! Agora era a parte onde eu seria acusada de pedófila ou sequestradora, seria denunciada à polícia ou pior, à dona Lucinda. Seria expulsa e voltaria para a vida cômoda na cidade da minha tia.

   Claro que eu poderia explicar tudo, contar a verdade e mostrar que sou inocente e que o monstro é ele que abandona todo dia uma criança como Hanna.

    Mas, sempre fui péssima em me explicar, por mais que as coisas que eu dissessem fossem verdade, o fato de alguém estar me olhando, atentamente e esperando uma resposta convincente me deixava nervosa. Eu começava a gaguejar e a desviar os olhos e então declaravam que eu era culpada.



  - An...Olá - Falei forçando um sorriso educado o olhando. -  Eloise, prazer. - Me aproximei estendendo a mão. - A energia acabou. - Comecei a explicar contando até dez mentalmente para manter a calma. - Ela ficou com medo e veio me procurar...

   - Eu sei quem você é. - disse ele de modo grosseiro enquanto colocava Hanna no chão e virou o olhar para mim.

  - Sabe é? Quem diria né? Que bom então, vamos evitar os comprimentos e todas essas coisas de primeira vez. - Falei rápido olhando Hanna e a parede, olhei o papel de parede que estava desgastado e ele parecia um ótimo lugar para olhar em vez dos olhos de um pai bravo.

- Hanna meu doce, vai para cima, por favor. -Observei ele entregar o celular com lanterna ligada para ela. - Papai já sobe atrás de você.


- Não vou não... - ela falou no momento em que a luz voltou e percebi o alívio dela ao ver todas lâmpadas acessas de novo. - Eloise é legal, e não quero que fale para ela ficar longe de mim. - Ela falou decidida cruzando os bracinhos. De um modo engraçado, em outras circunstâncias eu até riria.

- Eu não vou falar para ela ficar longe de você meu amor, só quero conversar com ela, mas está tarde e você vai acordar cedo amanhã. Prometo que te conto nossa conversa amanhã, pode ser? - Ele falou com a voz carinhosa a olhando, algo surpreendente para o jeito que ele parecia ter.

Ele era alto, não era super forte, mas também não era fraco. Tinha cabelos em um tom de mel, que estava todo bagunçado, talvez causado pelo capacete em sua mão.

  Tinha olhos castanhos escuros e uma sobrancelha que qualquer mulher morreria para ter. NÃO! Ele não parecia o tipo que faz a sobrancelha, a dele era natural, mas era muito bem alinhada.

E ele fazia a barba, o que era bom, porque barbas me lembram pedófilos e eu ficaria muito incomodada se o pai da minha vizinha criança tivesse cara de pedófilo.

   - Tá bom papai... - Hanna suspirou e me olhou. - Me conta depois, para eu saber se a versão que ele contar vai ser a mesma que a sua. - Ela sussurrou para mim se virando para a escada e a subindo lentamente.

A acompanhei com o olhar sorrindo nervosa, ela poderia ser teimosa e decidir ficar né? O pai dela não me trataria mal com ela por perto.

- Acho que você tem o conhecimento de que isso que fez é um crime, não tem? - ele me olhou com uma sobrancelha arqueada.

  - Não sei... - respondi vagamente no mesmo tom o encarando. - Crime igual abandonar uma criança o dia todo sozinha sem um responsável?

  - Não se meta no que você não sabe - ele falou como se estivesse puxando o gatilho de uma arma. - Acho que não preciso repetir para ficar longe da minha filha, afinal qualquer pessoa na sua idade já teria consciência de que isso é crime e eu realmente não espero ter que levar isso para justiça.

  - Justiça?- ironizei. - Ótimo, vamos contar também sobre ela ficar 8 horas por dia sozinha, ou até mais quando acontece suas emergências, vamos falar sobre ela ter que cozinhar sozinha e do perigo que isso traz, ótima ideia, mais alguma coisa para colocarmos na lista do que falar pro promotor infantil?

  - Não se meta na vida da minha filha, não me importa o quanto insignificante e infeliz seja sua vida, te garanto que não precisa envolver minha filha nisso, ela já tem coisa de mais na cabeça.. - ele falou mais calmo sem tirar os olhos de mim. - Espero ter sido claro.

  - Eu não chamo ela, chamei hoje a tarde só, para ver um filme. Você devia pensar sobre ela ser uma criança, ela precisa de atenção, ela precisa ter alguém para conversar o dia todo sobre coisas bobas, mas que ela com a idade que tem, tem a necessidade de falar sobre essas coisas. - protestei abaixando o tom de voz, para que ela não acabasse ouvindo.

- Eu criei ela até aqui, do meu jeito e muito bem. - ele declarou se afastando da porta- Não é agora que uma caipira intrometida vai se mudar para o prédio e querer intervir no modo como eu crio minha filha.

  - Eu não quis me meter... - falei  baixo magoada pelas palavras. - Eu só queria que você soubesse que por mais que ela finja estar feliz por estar sozinha, ela não está.

- Não te perguntei nada. - ele se virou para a escada. - Espero que você não tenha mais contato com ela, pelo bem dela.

- Vai se ferrar... - Murmurei baixa irritada.

- Aron, se for para me desejar coisas ruins, use meu nome pelo menos. - Ele disse enquanto subia as escadas, ele estava de costas, mas dava para perceber o tom de ironia.

- Vá se ferrar Aron! - falei de modo cínico fechando a porta.

- Boa noite também Eloise. - ouvi a voz dele abafada ao fechar a porta.

 Mudança faz parte, reviravoltas a parte.Onde histórias criam vida. Descubra agora