Os votos do seu Flávio

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Meu nome é Flávio. Tenho 53 anos. Nenhum filho, nem família. Trabalho no shopping. Sou vigia do banheiro masculino. Minha função é ficar aqui, de braços cruzados, ao lado da pia. Só tenho que olhar. Olhar homens urinando, defecando, espremendo espinhas em frente ao espelho. Não é preciso experiência. Não é preciso formação. Basta ficar ali, parado, oito horas por dia. Um salário. Para quem não tinha nada, um bom negócio.

Muita gente se pergunta o porquê de eu estar ali. Banheiro público está sujeito a vandalismos, depredações e, é claro, depravações. Uma vez eu pequei duas bichas se chupando dentro do toalete para deficientes. Imediatamente coloquei as bonecas pra correr. Mas maior parte do tempo é apenas tédio e fedores.

Antigamente eu tinha que entregar o papel para que os clientes secarem as mãos. Agora, instalaram essas máquinas de ar quente, que não enxugam nada. Fiquei obsoleto, mas eles não podem me demitir. O que seria do banheiro masculino sem mim? Pichadores emporcalhando as paredes, crianças entupindo os vasos com papel higiênico, bichas se chupando a qualquer hora do dia ou da noite. Não. E que cliente se sentiria confortável num vaso sabendo que tem uma câmera vigiando? É preciso um profissional discreto para estar ali, atento, sem causar uma prisão de ventre psicológica no cidadão.

Infelizmente, como tantas outras profissões, muitos não reconhecem minha importância. Não me valorizam. Alguns vendedores, que trabalham há anos no shopping, que vêm aqui defecar todo santo dia, ainda têm o descaramento de não me dirigir nem um "bom dia". Logo eu, que os conheço melhor que seus melhores amigos. Que conheço pelo cheiro. Que sei os horários, as manias. Conheço seus podres, literalmente. O Dr. Gustavo, por exemplo. Faz parte da diretoria. Gente graúda. Nem sabe o meu nome. Mas eu sei o dele. Sei que ele come a feijoada do restaurante toda quarta-feira, mesmo com o desarranjo que ela lhe provoca na quinta. São sete, oito vezes. O banheiro todo fica empesteado. Ele sai suando frio. Mas na quarta seguinte ele tá na feijoada de novo.

Fui eu quem chamei a ambulância quando o Luiz teve aquela crise de pedra no rim. Ele tentou a todo custo urinar, saiu sangue e o diabo. Gritou, chorou, até que caiu desmaiado, segurando o bilau. O dele, é claro. Pergunta se ele veio me agradecer.

E assim é que eu vivo. Eu sou o guardião dos incontinentes, o observador dos mictórios, o zelador das descargas, o maître do lado de lá, o senhor dos vasos sanitários, o anjo da guarda das fezes alheias. E, enquanto eu estiver aqui, o cliente terá paz para evacuar no recinto.

Neste novo ano, desejo a todos ótimas entradas emelhores saídas. E, apesar dos pesares, acredito que o ano novo será a mesmamerda de sempre. Se quiser.

Colocando em minúscula porque em todas as outras vezes você colocou assim



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