CAPÍTULO 1 - Aceite meu presente

9K 668 737
                                    

Hoje completo dezessete anos, e há cinco minha vida deixou de ser doce. Passo meu aniversário encarando o chão do meu quarto, repleto de bugigangas antigas. A maioria são coisas da minha infância, mas que ainda sim as mantenho: uma pilha de dvd's antigos, uma boneca com roupa e cabelos esfarrapados. Uma fantasia de gato muito pequena e num tom de rosa já desbotado, de quando fui apresentar Os Saltimbancos no primeiro ano em que entrei para a escola. No meio delas, também há objetos que protejo com carinho e que jamais jogaria fora. Um álbum de fotografias. Uma caixinha contendo os óculos de leitura de meu pai. E claro, o violino de minha mãe.

Gostaria que ainda estivessem comigo. Ainda lembro da voz deles com perfeição, as risadas ecoando em meio ao aroma gostoso de café da manhã. Nossa antiga casa, apesar de simples e pequena, era aconchegante. Não triste e sombria como esta, nem com tantos cômodos para limpar. Tiro o pó da última peça e começo a colocar as coisas de volta no baú gasto, sua lateral meio chamuscada. O baú passou por poucas e boas assim como eu. Somos dois sobreviventes.

Guardo as peças velhas uma por uma, esperando que a tristeza que que tenho ao vê-las vá embora quando fechar a tampa. Deixo apenas o álbum de fotografias de fora. É um sentimento controverso. Quero olhá-lo de novo, vislumbrar um pouco da vida que perdi.

Folheio as páginas. Foi o único álbum que sobrou, e a maioria das fotos ali foi tirada nos meus primeiros anos de infância. Em uma delas, estou deitada no chão, com o rosto sujo e carimbando uma folha com as mãos cheias de tinta amarela. Na página ao lado, meus pais sorriem um para o outro. Minha mãe usa um vestido verde que ressalta o brilho dourado de sua pele escura. Seus cabelos castanhos caem em ondas sobre os ombros. Meu pai a admira com seus olhos âmbar. Seu cabelo negro está um pouco despenteado, porém ele parece não se importar. É uma cena tão terna que não canso de olhar.

Antes que eu guarde o álbum de volta, a porta do quarto se abre. Minha prima mais nova entra, suas írises grandes e escuras brilhando de empolgação.

­­— ­­­­Feliz aniversário, sua boba. — Ela me abraça, em seguida me mostrando um embrulho que tem nas mãos. ­­­— Minha mãe não quis me dar dinheiro quando viu que era pro seu presente, mas ainda consegui comprar uma lembrancinha.

Agradeço-a com outro abraço, então abro o embrulho. É uma tiara fina e delicada de pérolas falsas. Sorrio, meio contrariada. Entendo o que Sara quer dizer com isso.

— Soph, você não devia esconder suas orelhas só porque a Clarisse é cruel. Elas são lindas do jeito que são.

— Eu não me importo com o que a Clarisse acha — digo. Coloco a tiara e me admiro por um tempo no espelho. Instintivamente, toco minhas orelhas para ver se estão do mesmo jeito. Suspiro, aliviada. Pelo menos por enquanto, estão. Em geral, não há nada de estranho com elas. Só que, às vezes, de repente, elas meio que parecem pontudas e mais estreitas. É estranho de explicar. Poucas pessoas à minha volta já notaram esse fenômeno — aliás, prefiro que continue assim — mas isso não foi o suficiente para evitar que a irmã mais velha de Sara me infernizasse por causa disso.

E, falando na minha prima favorita, escuto a voz estridente dela me chamar. Deixo Sara com minhas coisas e sigo até o corredor, onde ela está esperando com um ar zombeteiro. Ela revira os olhos azuis quando me vê.

— Olá, gnoma. Minha mãe tá esperando por você lá embaixo — Um canto de sua boca se ergue. — Ela acabou de chegar. E parece furiosa.

Solto um suspiro resignado, me preparando para mais um dos chiliques de minha tia. Passo por Clarisse, resmungando, atravesso o longo corredor e desço as escadas. No hall de entrada, minha tia está inspecionando o quadro preto e branco na parede. Ela passa o dedo pela moldura, em busca de poeira. E depois avalia o aparador de mogno. E o vaso com flores em cima dele. Não encontrando o que procura, ela decide me encarar.

O destino de CinderelaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora