INOCÊNCIA

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Belinha estava de mãos dadas com os pais, dentro do elevador, rumo ao subsolo onde ficava o carro da família. Como fazia todas as vezes, pulava e falava aceleradamente, sem parar, durante o trajeto de 16 andares que separava o hall do apartamento e a garagem.

Falar, aliás, era o que Belinha mais fazia. A mãe a apelidara carinhosamente de matraca, tamanho o ímpeto daquela garotinha de apenas cinco anos no trato com a verbalização.

Mas Belinha não era do tipo de falar só por falar. Ainda que fosse apenas uma criança, tinha a língua afiada. Ou melhor, afiadíssima.

O pai dizia que ela era inocente e não falava para magoar. Mas nem todo mundo pensava assim. Havia quem achasse Belinha mordaz. Algo incomum pra uma linda garotinha como ela, educada em colégio de freiras desde o berçário.

No caminho entre o apartamento e a garagem, naquele horário, quase nunca o elevador parava em andar algum. Mas naquele dia, excepcionalmente, ele desacelerou e abriu as portas no quarto pavimento.

Um senhor de sessenta e poucos anos e cento e muitos quilos entrou. Os pais de Belinha nunca tinham cruzado com ele em todos aqueles anos em que moravam naquele edifício. Provavelmente, era um morador novo.

Um frio percorreu a espinha do casal.

- Bom dia! – cumprimentou, com grande simpatia, o senhor acima do peso.

- Bom dia! – responderam os três, em uníssono.

Belinha parou de pular. Ergueu a cabeça e virou os olhos na direção do homem.

- Moço, você está esperando um neném?

Os pais de Belinha apertaram aos mãos dela ao mesmo tempo e ruborizaram explicitamente. Ela prosseguiu:

- Se for uma menina, você deixa ela ser minha amiga?

Para alívio do casal, o senhor começou a sorrir. Abaixou-se até ela e respondeu, em tom professoral:

- Olha, eu não estou esperando um neném. Homens não podem ter neném; só mulheres. Eu tenho essa barriga grande porque gosto bastante de comer, entendeu?

- Noooossa, então você deve comer o dia inteiro, porque sua barriga realmente é muuuuito grande! – emendou.

- Beliiiiiinha! – advertiu a mãe, nitidamente contrariada, com o canto da boca.

- Não se preocupe, senhora! Sou pai e avô e sei como são essas crianças. Espontâneas até demais...

O elevador chegou ao subsolo. O senhor obeso despediu-se da família e saiu.

Os pais de Belinha aplicaram-lhe uma sonora reprimenda, mas a garotinha parece não tê-la assimilado como eles esperavam.

O carro da família já estava na rua, parado num semáforo vermelho, quando um jovem negro, amputado da perna direita, aproximou-se aos saltos da janela aberta do pai, que guiava o veículo. Belinha estava no banco de trás, sentada na sua cadeirinha.

O rapaz usava uma bermuda vermelha e uma camiseta regata branca. Vendia chocolates.

- Bom dia, patrão? Cinco chocolates por dez reais?

- Olha, pai, o saci pererê! – gritou a garota, eufórica, apontando o dedo indicador para o vendedor. – Compra dele, pai, por favor, compra dele, por favor, compra...

O pai de Belinha pressionou o botão do vidro para fechá-lo, na esperança que o rapaz não ouvisse a menção feita pela filha. Balançou a cabeça negativamente para a oferta dos chocolates, mas ainda teve tempo de ouvir o vendedor retrucar: "Saci pererê é o cacete, menina malcriada!"

- Chega, Belinha! – gritou a mãe. – Você não pode ficar apontando os defeitos das pessoas, minha filha. Isso é falta de educação!

- O que é defeito, mamãe?

- Esquece, garota! Só não fale mais dos outros, entendeu bem?

Belinha não respondeu. E a viagem prosseguiu. Quase uma hora depois, o pai estacionou o veículo na porta do colégio onde a filha estudava. A mãe desceu do carro, abriu a porta traseira e tirou a menina do assento. Pegou-a pela mão e a levou ao portão de entrada da escola.

No caminho, elas cruzaram com um amiguinho da turma de Belinha. Naquele dia, era a avó do garoto quem o levava para a escola. Porque havia se acidentado em casa na noite anterior, a pobre senhora estava com alguns hematomas nos braços e no rosto. Também lhe faltava um dente inferior frontal. A garotinha mirou o vão na boca da mulher e não perdoou:

- Moça, você deu seu dente para a Fada dos Dentes?

- Ahn?

- É... Aquela fadinha que troca nosso dente que caiu por uma moeda, sabe?

- Bom... Não, na verdade eu não conheço nenhuma Fada do Dente – respondeu a senhora, nitidamente desconcertada.

- Entra logo, garota, pelo amor de Deus! – ordenou a mãe, ao mesmo tempo em que praticamente empurrava a filha portão adentro. Desculpou-se com a mulher, que fez uma careta e não respondeu.

Ao final do dia, de volta ao prédio onde vivia, a família de Belinha rumava do subsolo para o 16º andar quando o elevador parou novamente no quarto pavimento. Aquele mesmo senhor obeso com quem cruzara pela manhã, o do neném, entrou de mãos dadas com um garotinho. O menino era um pouco mais baixo que Belinha, mas aparentava ter a mesma idade que ela.

- Oh, você de novo? Que coincidência, né? – brincou o senhor, dirigindo-se à menina.

Antes que ela respondesse, o garotinho olhou fixamente para o rosto de Belinha, levantou a cabeça em direção ao homem que o conduzia e comentou, em voz alta e empolgada:

- Olha, vovô, ela tem as orelhas grandes iguais às daquele elefante da história que o senhor me contou...

E dirigindo-se diretamente para Belinha, prosseguiu:

- Você também voa, igual a ele?

Belinha não respondeu. Inicialmente, os pais não tinham muita certeza se ela não havia entendido o comentário do menino ou se apenas fingira que não havia entendido.

Fato é que, desde aquele dia, Belinha nunca mais falou de ninguém. E os pais dela começaram a desconfiar que ela havia entendido, sim.

HISTÓRIAS (QUASE) VERÍDICASWhere stories live. Discover now