TOC

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Todo mundo naquela pacata cidade conhecia o doutor Santinho.

Primeiro porque a cidade tinha não mais do que vinte quadras, quinhentas casas e 3 mil habitantes.

Segundo porque ele se mantinha lúcido e saudável com quase cem anos de idade – e era o cidadão mais velho do município.

Terceiro porque ele tinha esse apelido, deliciosamente inesquecível, embora seu nome de batismo fosse José Maria.

Quarto porque era o único médico da cidade – e justamente pela excelência no desempenho das funções profissionais é que havia recebido essa carinhosa alcunha da população.

E, quinto, porque tinha uma estranha mania.

Doutor Santinho ainda dava expediente em seu consultório de segunda a sexta-feira, das 9 da manhã às 6 da tarde. Um final de semana por mês, fazia plantão de 12 horas no postinho de saúde situado na praça central, ao lado da igreja matriz.

Quando não estava trabalhando, gostava de ler jornal de pé, na mesa da cozinha e de trás para frente, e de assistir a lutas de MMA na televisão. Sim, ele era um aficionado por lutas em geral. "Desde os tempos do Éder Jofre, o maior pugilista do Brasil", costumava dizer.

Mas nem ler jornal em pé de trás para frente, tampouco gostar de lutas aos cem anos de idade era a estranha mania cultivada por doutor Santinho.

Embora negasse veementemente, com base nas décadas de experiência como clínico geral, o velhinho sofria de transtorno obsessivo-compulsivo, o popular TOC. Pelo menos era isso o que achavam dez em cada dez habitantes da cidade depois que tomaram conhecimento dessa doença de origem psiquiátrica.

Todos os munícipes, sem exceção, adoravam doutor Santinho. Mas sempre que o viam caminhando pela mesma calçada, abanavam a mão para cumprimentá-lo e tratavam de atravessar a rua a passos largos. Era melhor que evitassem o corpo a corpo com o médico quase centenário.

Inocente que era, o velhinho jamais percebera que dia após dia passou a ser evitado pelos vizinhos. No fundo, achava que o mundo moderno havia imposto forçosamente a pressa à rotina dos seres humanos, mesmo naquela pacata e minúscula cidade onde todo mundo conhecia todo mundo. Lamentavelmente, para ele, as pessoas já não tinham mais tempo a perder com prosas animadas sob a sombra de uma mangueira, como no auge de sua mocidade.

Certo dia, uma nova família se mudou para o município. Gente simples, vinda de longe. Pai, mãe e dois filhos pequenos. Alugaram uma pequena propriedade quase à beira da rodovia. O pai arrumara um emprego no mercadinho do cunhado, três casas à esquerda de onde ficava o consultório do doutor Santinho.

Logo no primeiro dia de trabalho, o novo morador saiu para almoçar e deu de cara com o médico, impecavelmente vestido de branco dos pés à cabeça – cabeça, aliás, escondida sob um conservadíssimo chapéu Panamá dos anos 40, também branco.

- Tarde!

- Boa tarde!

- O senhor deve ser o Doutor Santinho...

- Em carne e osso.

- Meu cunhado já me falou muito do senhor. Ele é o dono do mercadinho aqui ao lado.

- Ah, sim. Homem muito bom! Passeando pela nossa bela cidade?

- Não senhor. Me mudei para cá com a família no último fim de semana. Meu cunhado me chamou para trabalhar com ele.

- Que ótima notícia! Sinal de que os negócios estão prosperando e nossa bela cidade, crescendo.

- Pois é...

Doutor Santinho deu dois passos à frente e se aproximou um pouco mais do homem.

- Sabe, conheço cada um dos habitantes daqui. – disse o médico. E passou por três vezes a lateral da mão direita pela gola da camisa do interlocutor, como se quisesse espanar para longe algo que estivesse indevidamente repousado sobre ela.

- Tenho certeza que sim. – respondeu educadamente o homem, desviando rapidamente o olhar para o local que havia sido limpo – ou sei lá o quê – por doutor Santinho.

O velhinho, então, desabotoou o primeiro botão da camisa de mangas curtas que o homem usava, quatro dedos acima do peito. E, como se isso fosse a coisa mais normal do mundo, prosseguiu com a prosa.

- E o senhor está gostando da nossa bela cidade?

O homem olhou para o próprio peito, ergueu a cabeça, mirou o médico e, sem entender patavina, respondeu que sim.

- Fico muito feliz! - E desabotoou o segundo botão. – O senhor sabia que meu pai foi um dos fundadores da nossa bela cidade?

O homem fez menção de recuar, mas ficou com medo de parecer ofensivo ao velhinho.

- Não... Não sabia...

E Doutor Santinho, antes que fizesse novo comentário, já havia desabotoado o terceiro e o quarto botão da camisa do interlocutor.

"Ou esse velhinho é maluco, ou é depravado", pensou o homem.

- Bom, Doutor Santinho, preciso ir...

- Espere, meu filho... – e desabotoou os dois últimos botões que ainda estavam dentro das casas, na parte de baixo da camisa. – Quero que saiba que desejo muita sorte e sucesso para você com seu cunhado! E que sua família seja muito bem-vinda a nossa bela cidade!

- O-obrigado – gaguejou o homem, agora com peito e barriga completamente à mostra.

Doutor Santinho deu nova espanada na camisa do homem, agora na manga esquerda, e começou a abotoá-la novamente. De baixo para cima, com todo o cuidado.

- Desculpe, doutor Santinho, mas é que minha hora de almoço está passando...

- Meu filho, a pressa mata! Acalme-se! - E recolocou os últimos botões ainda abertos nas suas casas, até a gola, fechando a camisa do cidadão por completo.

- Doutor Santinho...

- Tudo bem, meu filho! Vá almoçar. Mas vá com Deus! Foi um grande prazer conhecê-lo! E lembre-se: a pressa mata!

O homem coçou a cabeça e tomou o rumo de casa. Havia sido alertado pelo cunhado sobre uma louca mania do velho médico da cidade, mas não fora informado sobre qual era essa mania, exatamente. Balançou a cabeça em sinal de descrédito e começou a rir sozinho, sem olhar para trás.

Doutor Santinho sacudiu a poeira das calças, alisou o bigode branco com as pontas dos dedos, ajeitou o chapéu Panamá e começou a caminhar, decidido, de cabeça erguida, orgulhoso por ser quem era. Mas não sem antes se certificar se todos os botões da sua própria camisa estavam devidamente fechados.

HISTÓRIAS (QUASE) VERÍDICASWhere stories live. Discover now