Capítulo 01

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Qual a diferença entre sonho e realidade? É engraçado o quanto muitos acreditam saber sobre o assunto. Como algumas pessoas afirmam com tanto fervor que veem coisas ou ouvem coisas que não existem. Ou talvez existam, mas,como você pode ter tanta certeza? Para muitos animais o arco-íris não existe, pois eles não tem capacidade de observá-lo. Mas isso não tem nada a ver com Nicolas, ou talvez tenha. Ele estava de frente para todos no tribunal, onde afirmava com todas as letras não ter assassinado o jovem Marcos naquela sexta feira de abril. Todas as provas estavam contra ele. Todo o sangue apontava para ele. Nenhum juri prudente do país o deixaria livre de punição. O martelo foi batido e a sentença: dois anos de trabalho comunitário no sanatório Herta Mueller, mais conhecido como a Colina Silenciosa. Não se escuta muito de quem foi pra lá, até porque este era um lugar onde jovens e famílias inteiras despejavam aqueles dos quais não podiam ou queriam cuidar. Idosos com problemas mentais, jovens com deficiências. Enquanto o dinheiro caísse na conta do sanatório(que também atendia pelo nome de asilo) todos os meses, os tratamentos e cuidados eram mantidos. As coisas se complicavam quando não havia pagamento.


Nicolas não tinha completado idade para ser preso em regime fechado e a medida alternativa foi acatada. Dois anos sob acompanhamento total e monitorado, com chance de diminuição da pena por bom comportamento. Era uma pena branda em comparação a maioria. Mas era uma pena alta demais caso Nicolas fosse inocente.

Em 2020, ano em que a taxa de crimes triplicou os números da última década, foi estabelecida uma mudança no código penal para punir todos os infratores acima de 8 anos de idade. As sentenças eram estabelecidas de acordo com o grau de cada delito. Um dos casos mais interessantes foi do pequeno Wilson, de 9 anos, que foi sentenciado a cinco meses de trabalho supervisionado em uma fábrica de brinquedos pelo furto de um carrinho de brinquedo do seu vizinho, Wellington.

No caminho para o sanatório, em um carro de polícia, Nicolas começou a pensar em tudo que havia levado ele até este momento. A cidade começava a sumir das janelas e ele via apenas árvores e sentia o clima ficar mais frio conforme subiam a colina. Seus pensamentos estavam passando por uma análise do que aconteceu no dia em que as luzes apagaram.

O sino para o recreio havia tocado. Era, muitas vezes, como o estouro de uma boiada. Todos correndo em direções distintas, se esbarrando e fazendo barulho. Os clubes de luluzinhas e mauricinhos se formavam nos cantos badalados. Os clubes nerds e esquisitos (o que pode ser um pleonasmo em muitos casos) se escondiam nos cantos que restavam, o mais longe possível dos grupos sociáveis. A principal característica humana se mostrava presente: fazer parte de um grupo. Algumas pessoas tinham facilidade de passar de um para outro, sendo conhecidos como os mais sociáveis. Outros são extremamente focados em seu "nicho" e não saem dele, sendo menos sociáveis. E existe ainda o não-grupo dos antissociais, das pessoas que colocam fones de ouvidos para escutar suas músicas favoritas em um canto acompanhados ou não de um bom livro. Nicolas não tinha um grupo exatamente definido para participar e pulava de lugar em lugar. Não era o nerd de aparelho que fala engraçado, mas também não era o mamute de dois metros de altura que joga basquete. Era um cara comum que socializava e ponto.

Todos grupos e não-grupos, dos tempos de bebê até os de adulto, criam desavenças. Algumas fáceis de cuidar, outras não. Pense, por exemplo, em times de futebol. Os torcedores do time A odeiam os do time B apenas por eles torcem para o time B e, em jogos do time A contra o B, eles caem uns em cima dos outros para bater e até matar uns aos outros. Nem eles ganham, nem o time ganha, nem ninguém ganha. Essa é a selvageria dos grupos humanos. E você se acha muito evoluído, não?

Nicolas não tinha um bom relacionamento com o pessoal do basquete, pois não tinha altura para jogar com eles e por isso não era bem aceito por lá. Em uma sexta feira de abril, a professora de educação física, que tinha pouco apreço pela educação e meramente espalhava materiais para os alunos se divertirem durante o tempo de sua aula, apitou. Ela anunciava a troca de um jogador por outro. Tirando Marcos do time e colocando Nicolas em seu lugar. A decisão não foi aplaudida por nenhum dos presentes. Nem mesmo por Nicolas. Aquilo era uma enrascada enorme. Se ele falhasse, o que muito provavelmente aconteceria, os colegas do time de Marcos o detestariam (com toda razão). Ganhar alguns pontos talvez equilibrasse as coisas e até traria alguns benefícios como aceitação limitada no grupo.

É claro que todos pegavam pesado com um novato no jogo que, além de baixa estatura, tinha baixo potencial para o jogo. Ele mal conseguiu chegar perto da bola durante toda a partida. Era mais um peão rodando e rodando para um lado e para o outro. Nos poucos momentos em que conseguiu encostar na bola foi apenas para passar para outro jogador bufante e apressado para marcar pontos. O fim do jogo? Um fracasso do time em que Nicolas jogava. Marcos era o principal jogador deles. Apesar de todos dizerem que os jogos em escolas são amistosos, todos sabemos que, no fundo, não são.

No fim do dia, Marcos e mais três amigos o empurraram para um beco perto da escola para um acerto de contas. Uma conta bem cara. Mas as coisas não saíram como deveriam ter saído. Nessa ocasião, imagina-se, o cara baixo (comparado com jogadores de basquete) leva uma surra e volta chorando para casa; fim. Mas as coisas saíram diferentes. Nicolas poderia ter corrido e, quem sabe, chamar a polícia, diretores, pais, etc. Mas, é claro, essas pessoas não resolvem esse tipo de problema. O máximo que fazem é empurrar para outra ocasião o acerto de contas. Se ele quisesse encerrar o problema, era necessário enfrentá-lo em vez dese lamentar ou choramingar. Ele conseguiu acertar socos bem fortes no queixo de três deles até levar um soco de Marcos e apagar. Quando acordou no hospital, seus pais o olhavam com algo que misturava felicidade por ter um filho vivo com a tristeza de ter um filho que também é um assassino.

O fato era que Nicolas não se lembrava de ter feito nada disto. A única coisa que se lembrava era de ter apagado depois de levar um soco. Como poderia ele ser responsável por isso? Mesmo que fosse culpado, se nunca lembrasse do que fez, a punição aplicada teria algum resultado? A ausência de provas pode ser considerada uma prova para culpar alguém?

- Sai logo do carro! - Gritou o policial ao perceber que Nicolas não havia escutado da primeira vez.

- Sim senhor! - Respondeu ele, ainda viajando em meio aos pensamentos. Algumas pessoas sonham apenas quando dormem, outras viajam o tempo todo em seus próprios pensamentos, e esse era o caso de Nicolas.

O sanatório tinha duas partes distintas. Uma em arquitetura antiga em enxaimel, e outra completamente moderna, que devia ter sido construída poucos anos atrás. Ambas pareciam frias e sem vida. Paredes verdes com janelas grandes e um telhado escuro por conta da água da chuva. Uma boa quantidade de limo em todos os cantos.

Uma senhora sorridente vinha ao seu encontro vestindo um avental branco e um chapéu de enfermeira. Ela ajeitou um pouco os óculos antes de cumprimentar o policial.

- Sejam Bem vindos. Este é o Sr. Nicolas?

- Sim. - Disse o policial. - O pirralho encrenqueiro. Tem guardas o bastante por aí caso ele dê problema?

- Não se preocupe com isso, policial. Temos bastante segurança por aqui. O senhor pode ficar tranquilo.

- Então tá. - E virou as costas, pegou o rastreador e colocou na perna de Nicolas. - Esse aí é o melhor rastreador que temos, sabe? Se tentar tirar ele, você leva um choque que vai te fazer desmaiar de tanta dor, entendeu?

Nicolas confirmou apenas balançando a cabeça.

O policial deu um sorriso para a enfermeira, pensando que com uma pequena amostra de selvageria conseguiria conquistar o coração da moça, mas não foi isso que aconteceu. Ela não demonstrou nenhum tipo de aceitação na amostra gratuita de medo. Insatisfeito, disse um "até mais" e foi embora no carro de polícia.





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