MUNDO DIÁRIO - SEGUNDA EDIÇÃO APÓS O DESPERTAR

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Diário de Alice
Quarta, treze de janeiro

Aconteceram umas coisas meio estranhas hoje. Na verdade, foram mais engraçadas do que estranhas. Dona Sonia, a diretora da escola, teve um chilique na frente da turma. Na verdade, um chilique foi pouco. Ela só faltou espernear. Foi engraçado, mas ninguém riu. Nem eu. A gente não conseguiu. Ela entrou na sala para falar com o professor de química, o Botelho. Na hora ninguém ligou, mas então ela começou a aumentar o tom de voz e o Botelho fez uma coisa que ninguém sabia que ele podia fazer.

Ele respondeu com voz firme. O Botelho!

Olha só, o professor Botelho - o nome dele é Oscar Botelho D'Avra, mas todo mundo só chama ele de Botelho - é o professor mais submisso que eu já vi na vida. A vaca da Sonia adora chamar a atenção dos funcionários e dos professores na frente da gente, mas o Botelho é o único que nunca reclamava, nunca levantava a cabeça, nunca falava nada. Pois é. Ele mesmo. Olhou bem na cara da diretora e disse a ela que ela falasse baixo, ou ele pegava as coisas dele e ia embora. Ela disse que tinha uma fila de gente querendo trabalhar. Sabe o que ele fez? Começou a rir! E disse: "Boa sorte". Pronto, bastou isso pra mulher ficar possuída pelo demônio. Ela falou tanta coisa, mas não fez nada, só saiu desesperada. E o Botelho continuou a aula como se nada tivesse acontecido. Depois, foi embora. Como todo mundo.

Aliás, eu ouvi esta semana que a coordenação estava sem saber o que fazer. É que eles tentaram marcar nossos simulados do ENEM deste ano para vários fins de semana, mas parece que nenhum professor e nenhum funcionário quer comparecer. Bom, querer comparecer é um modo de dizer. Eles disseram que não iam aparecer de jeito nenhum. Não adiantou ameaçar nem nada.

O que é ótimo, porque, que eu saiba, nenhum aluno iria vir mesmo. Ninguém quer fazer nada de trabalho nem de escola no fim de semana. Disso eu tenho certeza. Não sei como tenho certeza, mas só sei.

Pelo visto, algumas pessoas vão falir...

Bom, deixando isso de lado, a Anna Moss veio falar comigo hoje. Parece que o Renato finalmente resolveu dar mole pra ela. Depois de todo esse tempo! Mas... não sei não... eu não gosto muito do Renato. Acho ele estranho. De todo jeito, a Anna é gamadona no olhar dele, diz que ele é todo perfeito, que o sorriso dele é maravilhoso e tal, mas tenho certeza que o que ela mais gosta é dos truques que ele faz de vez em quando.

O Renato Pigosi Stolm é do último ano, e desde sempre anda com um baralho no bolso de trás da calça. Vive fazendo pequenos truques. Dizem que ele conquista as garotas com isso, outros dizem que ele é de uma família de ilusionistas, imigrantes de algum lugar da Europa. Não faço a menor ideia, nem sei como alguma menina vai se encantar por alguns truques baratos de cartas. Mas a Anna está com os quatro pneus arriados por ele... vai entender.

E se ele não tiver realmente a fim da Anna? E se brincar com ela? A Anna sempre foi alvo de bullying na escola por ser gordinha... nunca conseguiu se controlar diante de qualquer coisa de comer... e o Renato, que consegue qualquer garota, de repente dar mole pra ela, me deixa com a pulga atrás da orelha...

Ah, eu devo estar imaginando coisas. Afinal, eu já não gosto muito dele desde muito tempo... talvez seja só meus olhos vendo besteira...

Espero que seja só isso...

Na saída, a Anna saiu correndo pra ver se encontrava o seu ilusionista preferido. Eu fiquei sozinha para ir embora, ela me deixou de lado, né? Foi quando eu vi todos os professores, inclusive o Botelho, indo embora também. Nunca isso aconteceu. Eles sempre ficavam depois do horário, mas lá estavam eles, indo embora, tranquilos. De longe, na janela, ela estava observando.

A diretora Sonia Mello Grignnettca.

Vulgo, a megera.

Dei de ombros. Uma hora ela estoura pelas costas, feito cigarra. Segui meu caminho para casa, pois meus pais deviam estar chegando para curtirmos mais um pouco daquele milagre.

O Silêncio de AliceOnde as histórias ganham vida. Descobre agora