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Não havia muitas coisas que me davam prazer quando comparadas com o número de coisas que me aborreciam. Jogar videogame, ouvir música, ler um livro de uma vez só. Às vezes eu gostava de ficar sozinho sem fazer nada de especial, e outras vezes a solidão me incomodava.

Odiava filas, ônibus, multidões, gritaria, barulho de carros e construções. Eu precisava estar preparado psicologicamente para poder ir a uma festa ou frequentar praças de alimentação em shoppings. Excesso de gente me incomodava. Muito. Fazia que eu me sentisse sufocando. De qualquer maneira, uma coisa que eu gostava de fazer era passar o tempo com a Anne. As pequenas aventuras, fruto de nossa irresponsabilidade, são alguns dos momentos que guardo na memória.

Naquela oportunidade, saímos da sala da diretora de cabeça baixa, mas apenas para fazer cena. Assim que a porta se fechou corremos pelos corredores, contendo o riso. Em nosso mundo, suspensão era uma ótima maneira de poder ficar dormindo até tarde. Não era como se minha mãe bêbada fosse se importar e brigar comigo, nem como se o pai maluco da Anne fosse deixá-la de castigo.

Fomos da escola direto ao McDonald's e pedimos milk-shakes e sanduíches da promoção. Sentamos em uma mesa afastada, de poltronas acolchoadas. O cheiro de batata frita me deixava morrendo de fome e fazia o sanduíche parecer ainda menor do que era, mas eu sempre me recusava a pagar por aquelas batatas que pareciam papelão.

— Temos que terminar sua orelha, Rafa — Anne lembrou, dando uma mordida no lanche.

Meu lóbulo direito ardia horrores com o cotonete ainda enfiado. Sério mesmo, doía demais.

— Você não quer fazer isso aqui dentro, né?

— Claro que não, vamos pra sua casa depois. Tá doendo?

— Óbvio, Anne. Tá latejando e tudo.

— Te dou um antisséptico pra passar depois.

— Depois quando? Não quero perder a orelha.

— Deixa de frescura. Não vai acontecer nada.

De onde estávamos dava para ouvir o sino da escola. Já era meio-dia e as aulas haviam acabado, isso significava que já estava na hora de ir embora. Muitos alunos iam almoçar ali, e a gente odiava ter que dividir o teto com aquele bando de remelentos. Se fosse só o povo da escola pública, tudo bem, mas o lugar lotava de playboys leitinho com pera. Eu já estava me levantando quando Anne segurou minha mão e calmamente pediu para que ficássemos. Ela era assim. Muito calma quando queria, mas explodia do nada e virava o bicho. Era engraçado – quando a bronca não era comigo.

— Eles vão zoar a gente — eu disse.

— Não tem importância, deixa eles falarem o que quiserem.

Essa costumava ser a política dela. Mas o fato era que eu me importava de ser chamado de alguns dos nomes que eles diziam. Podia apostar que a primeira coisa que notariam seria o canudo na minha orelha.

Voltei a me sentar ao lado dela, contra a minha vontade. Em poucos minutos o lugar estava lotado de estudantes. Anne rolou os olhos para um grupo de pessoas que se acomodou perto de nós e logo fomos surpreendidos por duas meninas sentando-se à nossa mesa.

Jéssica e Tamirys. Sim, Tamirys com Y. Nós as chamávamos de Ratazana e Urubu. Eram as duas meninas mais otárias da classe, que nos infernizavam havia anos. Eram tão chatas que me dava vontade de vomitar na cara delas.

— Bom dia, meninos — disse Jéssica. Dava para sentir seu perfume enjoado do outro lado da mesa.

— Ora, bom dia para vocês duas — Anne respondeu, com o maior sorriso falso que conseguiu montar na cara.

Jéssica olhou para mim, torcendo a cabeça como um cachorro faria.

— Rafael — ela disse —, eu sei que sua mãe é uma bêbada e seu pai te abandonou por motivos óbvios, mas não tinha ninguém pra te ensinar a usar cotonete? Você colocou no buraco errado.

Como sempre, tudo o que eu sentia era um mal-estar no estômago. Minha sorte era ter Anne para me defender, ou eu sairia dali correndo igual a um moleque besta.

— Jéssica, mil perdões. Tenho vários outros cotonetes aqui se você quiser enfiar em seja lá qual buraco você prefira enfiar as coisas.

Enquanto Jéssica gastava todos seus neurônios pensando em uma resposta, Anne me pegou pela mão e fomos embora. Só tive tempo de me espichar e agarrar meu copo de milk-shake.

Nesse momento minha mente começou a viajar e parei de ouvir o que ela dizia. Só o que eu pensava era na mão dela na minha, e, depois de um tempo, no meu sonho acordado, nossas mãos estavam em lugares completamente diferentes e inapropriados.

Fomos para a minha casa. Eu e minha mãe morávamos numa casinha que até era simpática. A pintura verde estava desgastada aqui e ali, mas nada que a deixasse muito feiosa. Morávamos ali desde sempre. Por dentro era comum – não nos sobrava dinheiro para gastar com decoração ou móveis melhores. Mas não era de todo ruim.

Minha mãe estava dormindo no sofá da sala, então subimos até meu quarto em silêncio. Não tinha muita coisa por lá além da cama, da escrivaninha e do armário. Alguns pôsteres ocupavam espaço na parede, e num canto ficavam minhas pilhas de livros comprados em sebos.

Anne largou a mochila em um lado, o casaco em outro e chutou os tênis para um terceiro canto do quarto, destruindo meu perfeito equilíbrio de organização. Eu gostava de deixar tudo impecável. O resto da minha vida era um caos, e a casa estava sempre bagunçada, já que minha mãe passava seus dias bebendo e assistindo ao canal de vendas da Polishop na televisão. Eu tentava deixar tudo em ordem, mas ela sujava mais rápido que eu limpava. Então meu quarto era o santuário. Não reclamei com a Anne até porque sabia que ela não dava a mínima. Ela se jogou em minha cama minúscula e eu sentei com as costas apoiadas na parede, recuperando o fôlego.

— Eu odeio isso — comentei, depois de um tempo. — Sério, qual o problema deles, por que não deixam a gente em paz?

— Porque ser estranho é dez vezes melhor que ser normal. Eles têm inveja — ela respondeu.

— Você tem problemas mentais — eu disse.

— É, eu sei — Anne falou. — Ninguém nunca te invejaria.

— Obrigado.

Ela provavelmente tinha razão.

Antes de Tudo Acabar (Degustação)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora