Capítulo 1 - Quando tudo mudou

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Eu sentia o local revirando, como se uma angústia sufocada refletisse ao meu redor. Tentava inutilmente puxar as cobertas da cama para cima da cabeça, tornar-me surda, mas era como tentar cobrir o sol com uma peneira. Ana e Greg estavam no andar de baixo, dentro do escritório, discutindo novamente. Eu podia ouvi-los claramente, mas eu não queria ouvir.

- Eu não a quero mais aqui! – gritou Ana. – Você não vê que isso vai me deixar louca?! Ela não é...NORMAL! – completou, histérica.

Eu podia prever suas palavras. Eu as esperava desde uma semana atrás. Foi quando tudo começou para eles. Para mim, no entanto, começou bem antes, quando percebi que era diferente de todos que conhecia.

Segundo meus pais adotivos, Ana e Greg, o orfanato do qual fui tirada os informou que meus pais biológicos haviam morrido de uma doença misteriosa quando eu tinha cinco anos. Apesar da idade, não me lembrava de nada a respeito deles. Suas vozes, feições ou mesmo seus nomes. Nossos momentos juntos eram uma lacuna em branco na minha memória.

Após a morte deles, eu fui adotada. Não havia ninguém para me acolher, nenhum parente que se identificasse. Ana e Greg não tinham problemas para ter filhos, mas eram ocupados demais para lidar com um bebê e adotar uma menina de cinco anos foi conveniente.

Ana era presidente de uma grande indústria de cosméticos e sua vida era o trabalho. Mesmo quando estava em casa, ela não parecia de fato estar lá, sempre com o rosto enfiado em seu computador ou falando ao celular. Greg não era muito diferente. Como um bem-sucedido advogado, ele estava constantemente viajando em suas inúmeras conferências e, em casa, ficava ao telefone ou lendo.

Cresci passando a maior parte do tempo em escolas de alto nível, freqüentadas pelos filhos das famílias mais ricas do país. Ana e Greg contratavam empregadas e mordomos para cuidar de mim quando eu estava em casa. Contudo, como não queriam que eu me afeiçoasse a nenhum empregado mais do que a eles, trocavam de pessoal com freqüência.

Por me sentir sozinha em casa, tentava compensar a solidão fazendo amigos na escola, mas sempre tive a sensação de estar deslocada. Era como se eu não pertencesse àquele mundo, embora, até os meus quinze anos, nada explicasse esse sentimento.

Foi após meu décimo quinto aniversário que as coisas começaram a mudar. Fui me tornando cada vez mais forte e rápida, e alguns dos meus sonhos começaram a ser premonições de situações próximas a acontecer. Minha pele se tornou ainda mais pálida do que já era, como se eu estivesse em um constante estado de pós-desmaio, e meus cabelos ruivos escureceram dia após dia, tornando-se completamente negros.

Meus sentidos se aguçaram e passei a ouvir sons a uma distância que pessoas normais não conseguiriam. Também passei a detectar odores que nunca tinha sentido antes e a enxergar assustadoramente bem. Meus olhos queimavam quando minha visão se aguçava para ver melhor e, a principio, pensei que ficaria cega. Às vezes, eu não conseguia controlar meus sentidos. Eles se manifestavam com vontade própria.

Ana e Greg me surpreendiam ao agir como se não notassem essas mudanças ou como se não fossem dignas de atenção. Eles ignoravam minha mudança física e a forma como eu podia carregar o sofá, a geladeira ou a cama, sem o menor esforço, de um lado para o outro.

Na escola, meus amigos perceberam que eu estava mudando. Não acho que eles tenham compreendido o que estava acontecendo, afinal, nem eu entendia, mas rapidamente se afastaram de mim, impelidos inconscientemente por um instinto natural de sobrevivência.

Golfinhos e Tubarões - O outro mundo (Tais Cortez)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora