A neve era tão branca

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Achei que seria um dia como qualquer outro, acordar, tomar banho, me cortar ouvindo Colony House, me arrumar com aquela roupa cheirando a mofo (pelo menos pra mim) e ir pro lugar onde quem tem mais amigos é superior, mas não foi. A neve era densa lá fora, a lareira queimava ao som de B.B King, que minha mãe adorava nos invernos, o ranger da madeira velha acordava a todos aos poucos enquanto eu arrumava o resto das minhas coisas pra ir. Minha parte interior da coxa ainda ardia por conta dos ferimentos recentes que fiz no banho, enquanto minha mãe fazia uma espécie de bife com brócolis que tinha um cheiro de infância pra mim, pois eu sempre era obrigada a comer e eu não sou muito boa em esquecer os aromas (ela dizia que brócolis faz bem pras pernas). Minha mãe nunca foi a melhor cozinheira, lembro na sétima série quando ainda moravamos no Queens, ela fez uma panqueca de sorvete para um concurso que tinha na escola. Nesse mesmo dia, ganhei medalha de pior lanche que alguém pode fazer, e fui zoada até o final do ano. Lembro da cara dos jurados uns 60m de distancia rindo de mim, achando que eu não podia ve-los. Os verões no Queens eram interessantes, o cheiro de pólvora dos assaltos recentes a lanchonete de frente, o fedor do suor das crianças que jogavam basquete o dia inteiro, minha mãe transando com o vizinho no banheiro. Foi uma epoca boa para eu desenvolver meu dom, eu sentia que tudo estava a meu favor, eu estava sempre um passo a frente.
Minha mãe terminou de fazer o almoco e logo percebi que estava atrasada pra escola, me perdi nas lembranças. Recusei que ela me levasse pra escola desde o início do ano, já bastava eu ser zoada pelo meu jeito, ser zoada porque minha mãe me leva é o limite, então evitei. O cheiro da escola é bem característico, um resumo seria o cheiro da puberdade misturada com cheiro de Jontex jogada atrás das arquibancadas do ginásio onde os garotos levam as meninas para praticar o ato do coito, um cheiro do cigarro Marlboro provavelmente "batizado" com uma maconha. O cheiro de giz empregina minha narina, entāo a maioria das aulas eu estou espirrando que nem uma louca. Nesse dia, eu estava mais calma, e por algum motivo eu estava com uma cara inegávelmente simpática. Minha maquiagem era leve, pois não tive tempo de fazê-la direito, deixei meu cabelo liso e preto solto caído sobre meus ombros. Tinha um garoto da turma 105, acho que o nome era Julian, tenho uma queda por ele mas ele nunca nem olhou pra mim, o cheiro dele é doce como as manhãs da primavera, daquelas que você sobe as montanhas pra ver o sol se por comendo sanduíches naturais sem graça. O dia estava normal, eu escutava minhas músicas enquanto esperava o professor chegar, até que eu sinto uma mão pousar delicadamente no meu ombro.
Fudeu. Alguém quer me encher, perturbar e me tirar do sério foi a primeira coisa que pensei, mas quando olhei pra trás e vi aquele olho escuro penetrante, o cheiro doce e o cabelo enrolado eu fiquei paralisada. O que? Julius? Vai me pedir dinheiro, só pode. O que eu fiz?
- Oi, será que você pode sentar comigo no intervalo hoje? Queria te contar umas coisas - ele disse.
- O quê? Você nunca nem me olhou e agora pede pra eu almoçar com você? - Não faço ideia porque eu disse isso.
- Nós temos uma coisa em comum, e queria falar que eu também posso ouvir as coisas quando encosto na pessoa, mas quando encosto em você eu não sinto nada. É como se eu estivesse mergulhando num vazio, com esse seu cheiro de madeira molhada. Eu sei que é muita coisa pra engolir, e sei que quer saber disso tudo, mas só posso te falar isso no almoço. Preciso ir - ele terminou.
Ele me encostou.
Ele sabe tudo.
Paralisei.

A menina da neveOnde as histórias ganham vida. Descobre agora