I - Estrelas borradas

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Hogwarts, 29 de junho de 1997

"Eu não posso fazer isso!" O incessante barulho em sua cabeça se traduziu nesta única frase. O peso repentino de suas panturrilhas tornou-se responsável por derrubá-la na poltrona, os olhos repousavam atentos numa perna da mesa de centro do Salão Comunal. Procurar um detalhe na mobília era uma clara tentativa de fugir da angústia, que retalhava seu frio coração. A varinha jazia no bolso interno da capa, e comprimia sua costela com considerável força. A forma como havia se jogado ao sentar, lhe fez cair numa posição nada confortável, porém, sua dor física estava sendo ignorada com sucesso.

"Não se trata do que pode ou não fazer! Você trilha esse caminho há um bom tempo e deve manter-se fiel a ele." Não conseguiu fitar aqueles pálidos olhos acinzentados, que brilhavam ainda mais assustadores sob a luz jade do aposento. Ele estava há minutos lhe encarando, mas só agora decidia circular pelo salão, reduzindo a pressão emocional na garota à sua frente. Ela sabia que ele estava certo, e concordava com cada palavra que dizia, mas a voz em sua cabeça suplicava desesperadamente por uma saída. Sempre fora capaz de fazer qualquer coisa no mundo para cumprir uma promessa, contudo, recentemente percebera que qualquer coisa era um preço muito alto a se pagar.

"Mas eu não posso..." O sussurro fraco tornou-se realmente inaudível, devido a pulsação rápida em seu peito e a um soluço deglutido antes de vir à tona. O silêncio seco parecia prestes a provocar cortes em sua pele, ou sua vontade de que isso acontecesse causara a sensação.

"O plano está quase pronto para ser executado. E quando acontecer, ele voltará com tudo! Os traidores serão os primeiros a sucumbir às consequências de seus atos de traição, e se você insistir em continuar cega por umazinha de sangue-ru--"

"CHEGA, DRACO!" Infelizmente, gritara um tanto alto para seu gosto. Por sorte era a hora do jantar, então apenas os dois permaneciam no aposento. Não percebera o momento certo em que saltou da poltrona, mas lá estava: em pé, com os punhos fechados, os lábios crispados, os olhos bem abertos e com as pupilas provavelmente um pouco mais dilatadas, o coração arrítmico. Sentia uma gota gelada de suor descer ao longo da curva de seu rosto, seu estômago guardava uma centena de morcegos imaginários. Era como se as piores sensações tivessem decidido se unir, num combo desgastante de sofrimento.

O garoto parou de andar e se virou para a menina, olhos demonstrando surpresa e lábios se abrindo num sorriso desdenhoso, que aos poucos se transformou numa gargalhada arrastada e repugnante. Deu alguns passos à frente com um pouco de cautela, atento a um mínimo movimento dela, ainda assim arriscando uma aproximação. A reação da moça parecia apenas uma ameaça, ele sabia que ela não seria capaz de machucá-lo e foi por isso que segurou seu braço esquerdo, ainda com o punho fechado, e o desnudou. Ela olhou para a cicatriz ali presente logo depois dele, e sua expressão facial se converteu num estado de asco, não suportava olhar a coisa horrenda por mais de alguns segundos sem querer amputar aquela parte de seu corpo.

"Aposto que ainda não notou isso. Quando pretendia lhe contar?" O olhar da garota buscava algo na lareira, alguma coisa que continuou perdida no fogo. 

"Ao contrário do que diz o ditado, opostos não se atraem, eles se destroem. O leão não é amigo da cobra, em algum momento um domina o outro, você sabe disso. O leão é mais forte, mas a cobra é astuta, exatamente por saber o lugar dos sentimentos."

"Não precisa elaborar frases de efeito para me fazer sentir culpada." Ao se voltar para a face do garoto, viu que este lhe sorria, triunfante. 

"Eu sei o que sou e como proceder. Você está certo, e eu tenho hesitado em ser leal a quem realmente devo. Eliminar minha fraqueza é fundamental, quanto antes, melhor." Se desvencilhou das mãos geladas de Draco com certa violência. Sentia-se decidida a arcar com as consequências que a cicatriz em seu braço acarretava.

"Boa garota. Você tem até amanhã para cumprir seu dever. Tenho certeza que será uma data memorável para todos nós." Ele parecia ao mesmo tempo nervoso e feliz, por razões que a garota desconhecia. Tudo o que ela sabia é que o que ele tanto planejara durante todos esses meses era secreto e ao mesmo tempo crucial, um importante dever do qual nem mesmo Severo Snape, o único em Hogwarts digno da confiança de Draco, tinha conhecimento.

Sentia o corpo pesar, necessitava do conforto de sua cama e algum tempo sozinha com seus pensamentos. Dera as costas ao garoto no Salão Comunal antes que ele pudesse continuar com a conversa. Não fora impedida de seguir até o dormitório feminino, pois Draco se distraiu com a chegada de alguns estudantes vindos da ceia no Salão Principal. Pelos burburinhos patéticos, era perceptível que se tratavam de Crabbe, Goyle e Pansy Parkinson, os fiéis escudeiros do herdeiro dos Malfoy. Estava protegida pelo seu dossel antes que qualquer um deles lembrasse de sua existência.

O soluço, reprimido por tanto tempo, chegou com força total. Por mais que tentasse, já não era possível refrear ou esquecer o choro. Qualquer pessoa que chegasse no dormitório naquele momento ouviria gemidos altos, desesperados, que finalmente tomavam forma após serem cuidadosamente guardados em seu coração, e já não aguentavam mais serem contidos daquele jeito. Os mais confusos pensamentos davam as caras na mente da jovem moça, e por um momento o mundo aparentava ser uma grande pilha de coisas sem sentido ou significado. Ela esqueceu de onde estava e quem era, depois que lhe fugiu da memória a razão pela qual lágrimas tão violentas pingavam no tecido branco do travesseiro.

Então, ao cerrar os olhos, um rosto lhe sorriu. Lábios finos e rosados que formavam o mais belo sorriso que já vira na vida: suave, tímido, travesso. Uma mecha dourada cobria parte de um dos olhos, cujo tom brilhava num verde vivo, e que lhe deixavam tão perdida que nem o feitiço dos Quatro Pontos poderia ajudá-la a encontrar o caminho de volta para casa. Era daquela mesma forma que lhe olhava toda vez que se encontravam, deslumbramento era um elemento sempre presente nos momentos que compartilhavam.

Mas a realidade do dormitório fora implacável, e voltar ao solitário breu lhe causou ainda mais dor do que aqueles felizes devaneios. A intensidade de seu choro foi diminuindo a medida que seus olhos se acostumavam à escuridão, num movimento rápido sacou a varinha e a conduziu para fora da proteção das cortinas, acendendo a vela em cima de seu criado mudo ao conjurar uma simples chama. Aquela luz era a única iluminação do cômodo. Observar seu efeito do lado de dentro do dossel era um tanto relaxante.

As lágrimas foram secando lentamente, seu coração batia de modo cada vez mais entorpecido pela indescritível dor de não ser outra pessoa. Em sua mente um momento de calmaria, pensava em pouca coisa, quase nada, naquele momento ela era apenas uma dor estranha, estável, paralisante. Nada mais. As outras coisas mais do mundo tornaram-se impossíveis de serem sentidas.

Sabia que naquela noite, o sono não viria facilmente, semelhante ao que vinha acontecendo nos últimos dias, esta madrugada seria mais uma, na qual seus olhos viajariam através da réplica de céu noturno que possuía no teto de seu dossel. Planetas e galáxias longínquos a alguns centímetros de distância, numa cópia quase perfeita, recebida de presente de alguém tão especial.

A única diferença entre aquela noite e as outras passadas em claro, é que o dia seguinte seria realmente decisivo: eliminar seu ponto fraco, para entregar-se por inteira num ato de completa devoção à quem devia lealdade, ou fugir carregando consigo quem mais amava, na esperança de que O eleito fosse bem-sucedido no fim daquela batalha maluca. Matar ou morrer.

Sim, ela estava dividida entre matar ou morrer, como consequência da desagradável ligação com alguém cujo nome lhe causava desgosto só de aparecer em sua mente. Não conseguiria cumprir a promessa embutida na cicatriz em seu braço esquerdo, se a razão de sua vulnerabilidade continuasse a lhe sorrir de forma tão encantadora.

Tentara de todas as formas evitar aquilo. Se houver mesmo um criador, apenas Ele será capaz saber o quanto ela tentou, mas o destino parecia mesmo irremediável.

Brincando de forma miserável com sua inseparável varinha, Regina Mills se perguntava se aquele pedaço de videira recheado com corda de coração de dragão tinha alguma noção de que seria utilizada para matar a dona de seus pensamentos, se de alguma forma sentia que sua próxima vítima seria Emma Swan.

A Maldição ImperdoávelOnde as histórias ganham vida. Descobre agora