Prólogo

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Reza a lenda que, há muitos milênios, Beherit governava os planos inferiores com suas mãos de ferro e coração gélido. Era o Deus supremo de todo o Inferno e o rei das dores de todo humano que tivesse cometido pecados em demasia em sua vida carnal. Estes eram transportados e destinados a sofrer durante um tempo indeterminado sob os chicotes dos Gorgos, os responsáveis pelas torturas. Os demnos, seres da escuridão e da maldade, criados por Ele próprio, não escapavam de um destino cruel ao voltarem para casa, caso não tivessem cumprido as suas missões. A única diferença entre o tratamento das raças era que os demnos tinham alguns privilégios e os humanos, que eram a escória, eram tratados como se fossem esterco: dignos de serem pisados e massacrados.

Beherit se divertia. Perdia — ou ganhava, como gostava de ressaltar — horas de seu dia observando as torturas, o chicote talhando as costas, o sangue espirrando, os gritos desesperados soando como música aos seus ouvidos e os órgãos caindo como uma cachoeira dos buracos no abdômen que seus servos faziam em seus prisioneiros. Sentava-se em seu majestoso trono em cima de uma pequena montanha e, com um cálice de cristal nas mãos, bebia do sangue que jorrava de suas vítimas, vendo os rios cor de rubi brotarem dos cortes e encherem sua taça. Assim passava os seus dias, alimentando-se com seus prazeres sádicos e carnais. Milênios se passaram desta forma, mas Ele parecia não se importar.

E, então, em um dia como outro qualquer, Beherit conseguiu admitir para si mesmo o quanto estava entediado de sua vida monótona. Não tinha mais a mesma graça. Tudo havia se tornado tão igual que nem os gemidos de desespero e dor dos seus escravos mortais lhe traziam diversão. Tudo se tornara banal, até óbvio demais. Conseguia prever o que iria acontecer no dia sem ao menos sair do seu castelo de pedras e ir para a região do submundo onde aconteciam as torturas. Tentava, também, ir para outras dimensões e propagar o mal em cada uma delas, mas o vazio não sumia, só aumentava. Qual era a graça de corromper mais algumas almas, fazer mais algum de seus filhos demnos e humanos inúteis sofrerem? O final seria sempre o mesmo. Não aconteceria nada de diferente no fim das contas. Iriam para sua dimensão amaldiçoada, ficariam lá e, se dessem sorte, iriam reencarnar. Fim. Nada surpreendente ou digno de alarde. Era assim há milhares de anos, por que teria alguma mudança? Não, nunca teria. Seria sempre daquele mesmo jeito.

Eternamente.

Isto era o que ia deixando Beherit cada vez mais desanimado e sentindo-se como um velho mortal, que já se cansara de todos os prazeres que a vida mundana poderia lhe oferecer, e que agora desejava com todo o seu ardor falecer e ser entregue às minhocas para lhe devorarem a carne. Sempre quando pensava deste modo, sorria triste; não poderia morrer, aquele era um privilégio dos mortais. Jamais poderia ser destruído, nem que Ele ou o Deus do Céu quisessem; iria estragar a ordem natural das coisas. As dimensões mais baixas precisavam de um governante, alguém para liderar aquela horda de pecadores. Se ele sumisse, aquilo tudo sumiria também, o que acarretaria desastres colossais. Não que se importasse realmente, mas era imortal. Por mais que sonhasse, jamais se livraria daquele fardo.

Mas a ideia de algum dia se ver livre daquele lugar não lhe abandonava os pensamentos. Cada dia que passava se tornava mais angustiante continuar daquela mesma forma, naquele mesmo lugar, vendo as mesmas coisas. Atingira um grau de depressão tão grande que não saía mais do castelo. Nem observar as chacinas lhe dava mais prazer. Sabia que não poderia ficar daquele jeito para sempre. Sua responsabilidade gritava em seus ouvidos, deixando-o louco. Porém, não sabia como prosseguir. Sem ânimo para nada, como conseguiria desempenhar o seu cargo de modo certo? Era preciso ser realmente sádico e se divertir com isso para governar o Inferno.

A resposta para os seus questionamentos internos veio quando uma de suas escravas do castelo deixou cair o seu cálice de cristal repleto de sangue a seus pés. Estava indo levar a bebida para seu mestre e não havia enxergado um pequeno degrau. A escrava se pôs a tentar limpar tudo o mais rápido possível e já esperava um castigo, mas nada veio. Beherit tivera uma ideia assim que os cacos de vidro se esparramaram pelo chão. Abaixou-se e analisou cuidadosamente os caquinhos transparentes. Antes, eles eram uma taça única, mas depois se tornaram fragmentos, independentes e não pertencendo a lugar algum. Cada pedaço era único, diferente de qualquer outro. Alguns pequenos, outros grandes, mas pedaços. E vieram do mesmo lugar. Era tão difícil de acreditar nisso!

A epifania tomava-lhe o ser de uma forma tão perturbadora, que o Deus não se importara com o sangue lhe entranhando no sapato ou com os pedidos de desculpas incansáveis da escrava, que estava com a testa encostada no pequeno lago vermelho com ilhas de cristal. Não, tinha coisas mais sérias para resolver. Deu as costas e saiu andando, quase correndo, deixando para trás uma escrava confusa e aliviada.

Beherit tomara a decisão certa: iria se dividir em várias almas. Assim, não deixaria de ser Ele. A essência não seria perdida, apenas desmembrada. Ainda seria o que era, mas em outros corpos, com outras personalidades e desejos. Seus fragmentos iriam cuidar do Submundo por ele. Claro, ainda seria Ele, mas ao mesmo tempo, não seria. Era confuso de entender, quiçá explicar. Mas não tinha que explicar para ninguém, pois não tinham o direito de opinar em sua vida. Sua missão era dominar aquele mundo de trevas, fosse qual fosse o jeito. E iria fazer isso, mas não da forma tradicional. Não cabia a ninguém se meter naquele assunto, a decisão já estava tomada.

A explosão foi silenciosa, mas incandescente. Um brilho violento e amarelado como o sol tomou conta de todo o Inferno, deixando muitos cegos temporariamente e sem saber o que estava acontecendo. Beherit não sentiu dor quando sua alma começou a se dividir. Antes de começar o processo, havia decidido que queria ter um líder entre as almas que sairiam Dele. A primeira alma que se formasse seria o mais forte, o líder, o real senhor do Inferno, aquele cujo seus irmãos e outros seres do submundo iriam temer, pois teria poder de destruição de suas almas imortais. Sabia que não poderia depositar poderes iguais nas mãos de seus filhos, portanto, eleger um líder parecia o mais certo a se fazer. A primeira alma — a mais poderosa — saiu, e foi como se fosse uma deixa para que as outras almas surgissem também.

Cinco almas se formaram na divisão do corpo e, enquanto tomavam forma, alguns pedaços destas mesmas cinco almas se desprenderam e se dispersaram rapidamente, como passarinhos que estavam presos em uma gaiola e agora viam-se em liberdade. As almas, em molde de orbes, flutuaram para longe do Inferno e perderam-se em meio às várias dimensões que existiam pelo universo. Os Deuses, que ainda estavam tomando forma em seus espectros de luz, sentiram uma dor insuportável assim que experimentaram parte de suas almas saindo de seus corpos. Foi durante a dor de ter perdido pedaços de si mesmos que foram criados e formados. A primeira visão que tiveram do mundo, a primeira sensação foi a do vazio, como se algo estivesse faltando. Haviam sido criados com escuridão e poder, mas cacos de suas almas perderam-se, não estavam completos.

O primeiro a tomar forma humana foi Ahriman, o líder dos cinco Deuses e Supremo Senhor do Inferno. Era o mais forte, o único que podia matar e dominar qualquer um dos irmãos. O mais respeitado, temido e que teria o poder completo do Inferno em suas mãos.

A segunda foi Satria, a Deusa dos Prazeres da Luxúria.

O terceiro foi Gunab, o Deus da Ira da Virilidade.

O quarto foi Thymr, o Deus da Avareza e da Pobreza.

E o quinto, o menos poderoso de todos, por ter sido o último a nascer, foi Lothur, o Deus da Inveja e da intriga. Sempre possuiu uma grande inveja de seus irmãos, principalmente de Ahriman. Lothur fora o único dos cinco que não tivera fragmentos de sua alma dispersados e que entraram em redes reencarnatórias em outras dimensões. Nasceu sem a dor de ter perdido um pedaço seu, sem verter lágrimas de sangue pela agonia que era ter buracos na alma, como os outros tinham.

Lothur poderia ter-se considerado sortudo por não ter tido esse infortúnio, mas logo percebeu que, por ter sido o último, era um amaldiçoado. E, por ser um amaldiçoado, nada que acontecesse ou não com Ele, era para o seu bem-estar. Não ter perdido pedaços de sua alma era a grande prova disso, embora, naquela época, fosse difícil conseguir enxergar a fuga de orbes ectoplasmáticas como sendo algo positivo.

Era o milagre que Eles testemunhariam anos mais tarde.


Oposição - Série Stellium [DEGUSTAÇÃO]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora