Rir até gritar, disse ele

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   Enquanto eu andava pela escuridão, Cecília vinha comigo. Com tanto tempo sem vê-la, senti muita saudade do seu jeito infantil, mas agora ela não me acompanha assim, ela me acompanha cabisbaixa, fraca, sem cor. Pergunto o que está acontecendo e ela não responde. Sem gestos, nem ao menos olhares ouço um barulho e olho o longe, quando meu olhar se volta para ela não existe mais nada lá. Continuei andando pela escuridão, o silêncio alimenta os meus ouvidos.

   A solidão da noite e as passadas das minhas pernas me fazem sentir uma paz tão amada que não há adjetivo que a classifique. Me sinto em paz com a minha alma, esse é o primeiro requisito para compreender o silêncio. A aqueles que não tem sincronia com a alma, os ouvidos doem, racham os tímpanos por falta do externo. O que falta é sincronia, como um gago na maioria das vezes tem somente um desarranjo entre o diafragma e a respiração, a alma não se encontra no silêncio. Uma melancolia, dependência, não gera palavras, somente distrações, palavras sim, soltas, sem inspiração. O vento vem pelo monte me fazendo enrijecer e sentir vontade de deitar no chão da calçada pra esperar amanhecer e poder aproveitar esse momento comigo. A lua não me acompanha, não gosto dela, não vejo graça.

   Continuo andando até chegar perto da casa de fada desde bem longe vejo a luz da sala fugir pela janela com a sombra de Mirada a me procurar. Vou até a casa e bato á porta. Miranda me recebe aos prantos, disse que achava que eu estava morto e eu confirmei que estava, mas morto de sono, ela riu e disse que já estava perto do meu descanso e consequentemente o dela. Celina me pareceu muito feliz, o que me fez recordar da desconfiança, ela não me parece uma pessoa que sonha de dia. Mas eu a aceitei. Me acomodei para o sono e Mirada também, Miranda, eu e o seu sorriso. Até hoje não sei porque amo esta mulher. Pra mim ela soa como uma poesia de borboleta com pitanga, ambas doces e geradoras de sorrisos. Sorrisos de Miranda.

   Enquanto vamos para a cama perguntei como foi o seu dia e o que tinha acontecido enquanto eu estava fora. Ao deitar nos meus braços se apertando no meu peito, ela disse que sentiu muita saudade e ficou preocupada com a demora. Não perguntou o porque da demora. Também não falei, não era o momento de criar desavenças na mente deste ser humano élfico. Enquanto deitávamos eu ouvia o relógio gritar. Gritado de rir, rindo até gritar. Segundo por segundo. Aquilo me incomodou, mas logo deixei de lado isso e tentei dormir. Mirada acordou saindo dos meus braços, balbuciou que o relógio fazia barulho. Na verdade o relógio sempre foi barulhento, só não havia silêncio o bastante para percebermos isso antes.

   Conversei com ela por alguns minutos antes dela ir até o banheiro. A visão de ter esta criatura nos braços me fez sentir um feixe de luz no inferno de Dante.- Desculpe se estou sendo meloso, caro leitor.- Aproveitei a ausência do sono de Mirada e fiz perguntas sobre esta casa e sobre a vida dela aqui. Ela respondeu objetivamente que se sentia muito feliz e que me ter ali a fazia ter uma Luz no fundo do poço. Disse que diante de toda essa situação me ter por perto era a certeza de que as marés ruins não atrapalham a virada das boas. Me fez sentir o aconchego de um lar, se deitou novamente no meu peito e de repente eu cospia cabelos enquanto me lembrava que nunca fui tão feliz.

Na madrugada acordamos com barulhos de tiros.



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