A GALINHA DE DEUS

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Que a gente tinha fome, tinha sempre sim senhor e o de comer era muito caro, que o pai era pobre e não tinha jeito pros negócios que sempre se abusavam da pessoa dele e iam deixando pra pagar os serviços da oficina depois e era um depois que nunca chegava.

A mãe se virava como podia fazendo costura pra fora que era habilidosa e caprichosa, sim senhor e ainda ajudava o pai a ferrar as patas dos cavalos na ferraria e ganhava uns trocados, ganhava sim senhor. Por isso ela tinha tristeza que com o passar dos anos ia ficando braçuda de tanto carregar peso na oficina, depois sem dente porque se o dente dela doía o pai mandava colocar perfume ou álcool ou melhoral e se nada adiantasse ele mandava arrancar no dentista que era mais barato que consertar. A mãe era um pobre bicho. Mas... voltando à vaca fria... que a gente falava mesmo de quê? Ah... sim... da comida...

Então ela, a mãe, mandava o guri maior ir no Ki frangão buscar uns cruzeiros de asas de galinha e outros cruzeiros de patas de galinha (mas ela tirava as unhas da pata da galinha que tinha medo que a gente se engasgasse) e ainda vinha um pacotinho com os miúdos do bicho e também a cabeça. Daí a mãe fazia uma noite sopa de patas de galinha e outra noite sopa de asas de galinha e tirava os olhos, o bico e a crista do bicho e botava a cabeça também.

Eu e o guri mais novo, a gente brigava para ganhar a cabeça, uma porque era a única peça da sopa que era diferente e, por isso, devia ter mais valor e outra porque era cousa boa mesmo. Eu, que era a mais novinha, fazia conta de cabeça de como devia ser aquela galinha que tinha tantas asas ou tantas patas e só uma cabeça, mas o pai dizia que um dia teve tanto pecado no mundo e deus castigou o povo mandando a fome e a única cousa que sobrou para alimentar as pessoas era uma raça de galinha que tinha nascido diferente, com muitas asas e com muitas patas e só uma cabeça, Essa galinha corria mais que todas e voava mais alto que as outras aves e só quem tava mais próximo de deus tinha o privilégio de conseguir pegar a ave pra saciar a fome da sua família. Eu dava bifa e peteleco na orelha do guri que corria e chegava primeiro para pegar a cabeça da galinha e quando eu conseguia chegar primeiro ele me dava uma biaba bem no meio da orelha, mas nem me importava que o que eu queria mesmo era pegar a cabeça da galinha. A briga foi crescendo e das bifas e das biabas e dos petelecos a gente se pegava no tapa, nos chutes, pontapés, puxada de cabelo e mordidas e foi aí que a mãe disse pra nós que quem comia cabeça de galinha ficava burro e não passava no colégio. O guri não deu fé, mas eu acreditei e nunca mais comi cabeça de galinha. Eu é que não queria repetir de ano porque no outro ano o livro "Nossa Terra, Nossa Gente" ia tar velho e como tinha sido o guri a usar, devia tar cheio de orelha de burro que é quando as páginas ficam dobradas e desbeiçadas que eu sei que tu não conhece esse dizer e eu é que ia ficar levando reguada na ponta dos dedos e ficar de castigo ajoelhada no milho ou no tampeiro atrás da porta. A professora era muito cheia de uma raiva e só se aliviava quando pegava com a pontinha das unhas e eram umas unhas grandes e cravava nas nossas orelhas até verter o sangue e depois tirava o tampeiro da porta, o tampeiro, que eu sei que tu não sabe porque não é pessoa lida em cousas da educação às antigas, era um tapete feito de tampinhas de garrafa de refrigerante e eram pregadas numa tábua e ficavam com o gargalo pra cima e a gente ficava ajoelhado ali até a raiva da professora passar e os joelhos ficavam em carne viva. A única que não ficava no tampeiro era a filha da professora e ela comia bala soft e chiclete e até picolé de ki suco e mostrava a língua colorida pra gente e se refestelava comendo rapadurinha de amendoim na aula e estalava os beiços, a puta, e eu tenho até hoje raiva daquela bisca.

Um dia cheguei em casa e contei pra mãe que a professora dava reguada e beliscava as nossas orelhas até correr o sangue e comecei a chorar. A mãe me olhou feio e disse: apanhou na aula e só sentiu dor agora? Só agora que vai chorar? Te escapa daqui, se não tu vai chorar com motivo e com vontade. Eu me piquei dali que não sou burra de apanhar duas vezes no mesmo dia. O guri continuou comendo a cabeça de galinha e não é que a mãe sabia mesmo das cousas? Que ele repetiu de ano e ganhou uma coça de laço do pai pra aprender a não ser vagabundo, preguiçoso e estudar pra ser gente na vida que o pai não queria filho marginal e burro dentro de casa. Ala pucha, que esse mundo é mui cheio de cousas erradas, gente com muito e gente com nada, gente que erra por falta de sabença e gente de conhecimento que erra por gosto em humilhar os que não são da sua igualha. Cada um carrega a sua dor do jeito que consegue. Eu venho carregando a minha por tanto tempo que bem que podia ficar mais leve o meu fardo. Bom, vou ali, volto rápido, é pertinho... logo ali, onde o cachorro cagou.


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