4 Noite

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As conversas giravam em torno de filosofias esotéricas e fins de mundo, sociedades distópicas e efeitos de drogas. Essas Taco conhecia bem. Para Dingo, novidades que causavam medo, mais que curiosidade.

Dingo passava parte dos fins de semana com a turma de Taco, bando de desordeiros que vira-e-mexia mofavam em porões de autoridades, sem apelação. Sem grana, não há apelação. Sem grana, não há direito. Direitos humanos para quem de direito. A marginália sequer sonhava com isso. O clássico de Malcolm X: "não confunda a violência do opressor com a resistência do oprimido".

Num desses fins de semana de noite ensolarada, Taco e amigos foram a um cemitério próximo ao bairro deles. Padre, Peita e Japa, os três loucos, ensandecidos, perdidos nas brumas da minoridade penal, o acompanhavam na jornada mística à morada dos mortos. Dingo foi convocado, mas não teve a coragem, a hombridade, a qualidade amoral de aceitar a subversão.

 Dingo foi convocado, mas não teve a coragem, a hombridade, a qualidade amoral de aceitar a subversão

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Taco e sua turma invadiram a madrugada tenebrosa em direção aos túmulos centrais do cemitério. Nada em volta, ninguém além, somente eles, e com eles os mortos, que não falam, não cantam, não gritam. Mas Taco grita e canta, sobe num túmulo, pega uma grande cruz, a usa de guitarra e a toca imaginariamente, para delírio dos amigos que o observam. Em êxtase, começam a pular nos outros túmulos, chutando e quebrando o que estiver no caminho. Ao som da voz de Taco, cantando Electric Funeral, do Black Sabbath, os amigos despertam os mortos. Guitarras mentais distorcidas, ao nível da histeria, preenchem o ambiente mórbido, despertar das bestas adolescentes, nada além, nada aqui, somente além da vida e da graça que a gerou.

Na mesma noite, após a profanação tumular, reuniram-se no apartamento do Japa para destruir tudo ao som de Vulgar Display of Power, do Pantera. Eram tempos pesados... a TV (de tubo, pesada, 32 polegadas) voou pelos ares, a exemplo dos melhores clips do gênero. "Você não é um roqueiro se nunca atirou uma TV pela janela", Padre costumava dizer. A vizinha, Bibi, chegou a tempo de aproveitar os últimos minutos da festa, antes da Polícia chegar. A tempo de chupar um ou outro, mas não de fazer o serviço completo. E assim foram todos eles para a Delegacia... ninguém foi preso, claro, mas sentiram o clamor dos cacetetes como poucas vezes haviam sentido antes... Bibi escapou da surra, mas não das mãos de alguns policiais. Anos depois, um exame de HIV com o resultado positivo sugou o que havia de interessante nela. Foi o fim. Continuou existindo, mas sem o brilho, a sacanagem e a vivacidade que a tornaram bastante popular. A aids não a mataria tão cedo, mas a frustração e raiva decorrentes da descoberta fizeram dela uma espécie de zumbi.

Assim era a rotina de Taco e seus amigos. Dingo pouco participava desses momentos mais "felizes", pois estava confinado em sua casa, como um bom novilho, no aconchego de seu lar amoroso e cheio de franca religiosidade, de correção moral e estúpida normalidade. Ah, a normalidade...

Dingo participava de algumas coisas, especialmente durante o dia. Frequentava a casa do cabeludo Padre, onde sempre rolava um Sepultura num volume transtornante. Não tinham em comum o som, mas o gosto pela bola. Ou melhor, pelo futebol. Jogavam aos finais de semana, em um campo de areia, com traves sem redes, com dribles sem repiques, com gestos sem tiques, apenas o mero prazer do corte, do cruzamento raso, da bola lançada, o açúcar do preciosismo, a alma no canto esquerdo do goleiro, no alto, perto de onde a coruja dorme. Dingo aqui se destacava. Bom driblador, competitivo, bom de arranque, bom garçom. Só não tinha fôlego. Durava pouco, ia pro canto, agachado, agonizando, a observar os sonhos passando e voltando e driblando... a arte do futebol está no drible. É o ápice, o momento, a glória, a história trespassada por um jogo de pernas. Taco também tinha qualidades. Matador, artilheiro nato, embora sem tanta habilidade. Padre, na força, na deslealdade, rei das lesões alheias, chegou a quebrar a perna direita de um rival certa vez. Era o estilo dele. Seco, duro, árido, como sua vida de merda. Seca, dura, árida como a areia daquele campo.

Amigas e amigos, no próximo capítulo, "Verdes-mares", apresentarei a terceira personagem desta história: Joanita. Até o momento, minha favorita. O capítulo é também um pouco maior. Esses primeiros são meio curtos, e imagino que a maioria dos leitores prefere capítulos maiores, mas prometo que teremos alguns mais recheados em breve. Gostou? Estrela nele! :D Comente, critique, diga algo! ;) grande abraço 


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