2 Dingo

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"E o fascismo é fascinante deixa a gente ignorante e fascinada.
É tão fácil ir adiante e se esquecer que a coisa toda tá errada.
Eu presto atenção no que eles dizem mas eles não dizem nada."
(Engenheiros do Hawaii, Toda Forma de Poder)



Ele estava deitado em sua cama, madrugada adentro. A porta estava aberta, e o pequeno Dingo podia ver o corredor dali. As luzes estavam apagadas, mas a claridade de fora permitia enxergar bem, mesmo naquele horário. Dingo tinha medo do corredor. O corredor, que ficava à esquerda de sua cama, e que parecia respirar no silêncio da noite. A noite que calava os corpos, mas falava às almas. Portas que se abriam de mundos distantes. No corredor, o silêncio etéreo de uma noite levemente azulada. O corredor que permitia a passagem para outros mundos. O garoto fitava com medo, o coração pulsando forte, respiração entrecortada. Sem rumor, algo se aproximava pelo corredor. Inumano, humanóide. Corpo muito magro, cabeça gigantesca, olhos enormes e oblíquos. Não muito diferente dos ET's de filmes de ficção e terror dos anos 50, e o pequeno Dingo crescia quatro décadas depois. Mas era isso que ele via. E o que ele via o deixava petrificado. Alucinadamente petrificado. Fechou os olhos. Virou para o outro lado. Cobriu a cabeça. Tremia. Pensou em olhar. Não ouvia nada. Mas via em sua mente a grande cabeça e aqueles olhos pretos. Ele via de olhos fechados aquilo que seu coração acusava há pouco. Ele queria sair da cama e fechar a porta. Mas não tinha coragem. Tentou dormir. O sono chegou, e ele dormiu. Sonhou com o corredor, primeiro vazio, depois invadido por um inumano de cabeça grande que caminhava devagar, mas jamais chegava à porta. E a cada olhada no corredor, uma pontada no coração.

Dingo cresceu em um ambiente que exalava infertilidade, apesar dos irmãos. Ele vivia à sombra dos dois mais velhos. Tratado com esmero pela mãe, com rispidez pelo pai, um quase desconhecido em sua casa. Era uma família de posses. Só não possuía o maior bem, o amor desbragado e descamisado que preenche a vida e o coração. Isso não havia, isso ele não aprendeu. Amar sem ser amado, só na teoria dos livros e em algumas poucas canções. Obras ficcionais, vidas paralelas.

Estudava muito, o que lhe dava vantagem sobre os irmãos privilegiados, que detinham o favoritismo para assumir posições de destaque na empresa do pai. Dingo não tinha o "perfil". Mas continuava estudando, não por um futuro melhor, senão porque desconhecia atividade diferente. Era um nerd, enfim. Um CDF. Um merda de um CDF, que mal sabia o que era tocar uma fêmea. Os hormônios saltavam, e ele nada podia fazer. A não ser, claro, aliviar-se por conta. O alívio era apenas físico, orgânico. A cabeça ia a mil, pois uma punheta era um crime contra Deus. Demorou para Dingo perceber a falta de lógica disso.

Dingo Pedernera queria estudar Ciência da Computação, fugindo do destino de seus irmãos, que fizeram Direito (o mais velho) e Administração (o do meio), sempre pensando na entidade mística de papai chamada Empresa. A Empresa necessitava de soldados eficientes. E Dingo não tinha vocação para o sacerdócio burocrático. Assim acabou travando uma batalha de sangue contra seu pouco estimado Pai, esta divindade inútil que o anulou por anos e anos.

Sua mãe era o escudo impenetrável de amor entre ele e seu pai, entre ele e seus irmãos. Toda forma, sua função não era maior que o temer a Deus, temer ao marido, ao chefe da casa, ao chefe da família, como mulher passiva que era, sem força nem personalidade própria. Mero anexo do macho alfa, a felicidade estampada na massacrante rotina. Não precisava sequer lavar ou passar, havia quem o fizesse, e bem. Serviços de cama ela dividia com algumas domésticas eventuais, não que ela soubesse com exatidão, mas não havia como negar. Não era claro, mas era óbvio (domínio do fato). A cultura dominante. A força contra a fragilidade, inclusive nos direitos. Com ela na frente, com as outras atrás, com ela na cama, com outras no carro, banheiro, sofá, chão, a puta que o pariu, a vadia que o chupou, a esposa que o curou, o domínio que exerceu, e a morte que o levou, um câncer fulminante, célere, a destruição total e a decadência rápida da indecência. Não há dinheiro no mundo que compre a saúde, não há trabalho no mundo que compense a vida que lesamos.


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Bom, pessoal, alguns capítulos (como este) são pequenos. Espero que não se importem muito com isso. Vou postar um por semana e, caso tenha gostado desse capítulo, por favor, aperte aquela estrelinha ali, por favor. Aceito críticas e sugestões, também. Vou viajar e provavelmente postarei o próximo capítulo (Noite) lá pelo pelo dia 19 de outubro. Quanto ao capítulo aqui postado, "Dingo", é uma pequena apresentação de um dos personagens principais, o inseguro garoto Dingo. Em breve, teremos um capítulo explicando a origem da terceira personagem da trama, Joanita (a minha preferida, pessoalmente). Venho percebendo um ótimo feedback de leitoras e leitores aqui no Wattpad, em forma de visualizações, comentários, estrelas e conversas no Facebook. Meu muitíssimo obrigado, sucesso a quem também escreve, e fiquem bem! :)


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