01 - A Princesa e a Perereca

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 Cindy surgiu como uma miragem quando as portas do elevador se abriram. Seus cabelos ondulados caíam em mechas degradê sobre os ombros. O corpo, ereto e firme, exibia suas curvas através da saia de couro preta e da camisa branca. Um maxicolar de influências africanas cobria-lhe o colo exposto. Nos pés, uma de suas últimas aquisições - um Manolo Blahnik preto - estreava sobre o chão frio do prédio.

- Bom dia, Cristal! - ela parou diante de um banner da empresa. O andar inteiro respondeu. - Vamos trabalhar, porque o Capitalismo não para pra ninguém!

Ela percorreu o caminho até seu gabinete distribuindo a dose habitual de sorrisos e frases inspiradoras. A Cristal Calçados amava Cinderela. Era praticamente impossível permanecer imune a tamanho carisma e generosidade. 

- Alguém dormiu bem ontem. - a secretária comentou despretensiosamente. 

- Eu acordei bem, Ruth. - Cindy assinou uns papeis que ela lhe estendera. - Na minha rotina não cabe stress. Sou jovem demais pra sofrer de problemas cardiovasculares!

Ruth não respondeu. Apenas contemplou a figura de Cinderela com uma expressão indecifrável.

- Por favor, não esquece de contatar a Debby, tá? Eu preciso dos croquis novos até o fim do dia.

Diante do gesto afirmativo da secretária, Cindy soprou-lhe um beijinho, entrou em sua sala e fechou a porta atrás de si.

Ruth abriu a porta com certa dificuldade, equilibrando a bandeja.

- Que patroa desnaturada! - Cindy disparou detrás de sua escrivaninha. - Desculpe por isso, Ruth. Não imaginei que um simples cafezinho fosse causar esse desconforto.

- Sem problemas, dona Cinderela. - ela se aproximou. - É o meu trabalho. Estou treinada pra isso. Foi a última vez que deixei uma porta me atrapalhar.

Cindy quis rir, mas não via a hora de tocar no assunto que lhe ocorrera algumas vezes desde o dia anterior.

- Você pode sentar um pouco?

Ruth pareceu surpresa. Ela depositou a bandeja diante da patroa, hesitou e, por fim, puxou uma cadeira.

- Pois não?

- Eu sei que não vem ao caso, diz respeito à sua vida pessoal e você tem todo o direito do mundo de guardar pra si mesma... - Cindy pegou a xícara enquanto estudava as próximas palavras. - Mas é que já faz um tempo que você trabalha aqui e eu não sei absolutamente nada sobre a sua vida amorosa. Você nunca fez qualquer menção a homens ou mulheres que lhe despertassem algo mais... Namora?

- Olha, dona Cinderela...

- Pelo amor de Deus, corta esse "dona"! A gente estudou juntas, Ruth. Não preciso repetir as histórias, porque você as conhece tão bem quanto eu. Nós somos amigas.

Ruth emudeceu. Algo em seu rosto indicava desconforto com a lembrança.

- Bom, eu não tenho ninguém. Se era isso o que a senhorita queria saber, com licença...

Apressada, ela levantou e se precipitou sobre a bandeja, mas Cindy pousou uma das mãos sobre a dela.

- Calma, Ruth. Eu só perguntei por curiosidade, mesmo. Não sabia que você ficaria tão incomodada. Me desculpa. Só queria conversar.

A secretária  relaxou os ombros, expirando. Parecia ter se dado conta da atitude intempestiva.

- Eu é que peço desculpas. Perdão pela grosseria. É que, você sabe, eu tenho muito trabalho a fazer. A gente pode conversar na hora do almoço, que tal?

- Ótima ideia.

- Já vou indo. - Ruth sorriu. - Com licença.

A secretária só tornou a respirar naturalmente fora do gabinete. 

- Só me faltava essa! - ela pensou alto, cuidando para que ninguém ouvisse. - Espero que o almoço, pelo menos, valha a minha paciência.

Gato BorralheiroOnde as histórias ganham vida. Descobre agora