3. Dedos gélidos fazem morada na memória

297 12 1
                                    

DEDOS GÉLIDOS FAZEM MORADA NA MEMÓRIA

Depois de semanas praticamente enfurnado ali, mal podia esperar pelo momento em que sairia e respiraria ar puro sem ter de pensar em voltar. Fora dito a ele que tudo correra na mais perfeita ordem. Já a vira repleta de ataduras e ligada a máquinas que nem sonhava saber pronunciar seus nomes. Em quatro dias, no máximo, sairiam para suas novas vidas. Imaginava como seriam felizes. Faria suas vontades e a compensaria por tudo, mesmo ela não fazendo ideia do que lhe ocorrera. Foi em meio aos seus devaneios que percebeu a barulheira vinda do corredor que dava na sala de cirurgia. Correu o mais que pôde.

- O que está acontecendo? – esbaforia medo e ameaça.

Deu-se com a imagem do médico e da enfermeira desesperados para controlar o fio de vida que parecia escapar de suas mãos naquela cama fria. Não sabia se era ódio, arrependimento ou ânsia de matar os dois, que acompanhava a adrenalina em suas veias.

- Salve-a ou irá com ela. – foi a única coisa que disse entredentes, fuzilando o homem de máscara cirúrgica.

O que se seguiu foram minutos apreensivos, onde a enfermeira aparentava agonia profunda, tremendo mais que a paciente em certos momentos. O corpo se aquietou, respirava regularmente, apesar de dar sinais lívidos. Já os outros três presentes tentavam controlar as suas respirações e suores, aliviados.

O ocorrido adiou a vida feliz a dois que tanto desejava. Foi chamado ao quarto de recuperação, como eles denominavam, a fim de discutirem sobre os detalhes dos pós-operatórios e últimos planos estratégicos.

Uma porta falsa dava acesso ao corredor escuro e uma luz se fazia surgir ao final. Pensou em parábolas estranhas sobre o cenário. Por um instante sentiu-se cego com a rajada de luz e cores claras, mas sua visão se acostumava muito mais rápido do que se conhece por normal. A ala onde se localizava o quarto era muito diferente do restante do lugar. Era acolhedora. Os móveis caseiros e pintura nova, com cheiro de decência. Por mais que já tivesse estado ali, não se acostumava ao contraste dos dois ambientes. Um era um mausoléu úmido e cinza nas profundezas da terra e o outro uma grande residência, quase um hotel de veraneio. Adentrou ao quarto, suas paredes revestidas de um papel rosa claro, com pequenas florzinhas lilases. Em um dos cantos havia um conjunto de mesa e duas poltronas macias, perto da janela estava a cama e na frente um pequeno, mas bonito armário de duas portas. Do outro lado tinha uma porta que dava ao banheiro. Os raios de sol eram alaranjados e provocavam uma sensação estranha e confortável. Percebeu o que era. Carência.

Seu estômago deu um nó que subiu pela garganta, irritando suas narinas. Engoliu em seco. Precisava tirá-la dali rápido.

Ela estava dormindo na cama, ainda com os pulsos presos nas laterais, caso acontecesse mais algum ataque. Eram frequentes, mas tinham diminuído. A visão entristecia seu olhar. Os hematomas estavam mais suaves que da última vez. Ainda assim parecia um anjo pronto para salvá-lo de si mesmo. O médico estava sentado em uma das poltronas. Segurava prancheta e caneta, anotava algo. Apontou com o queixo a outra poltrona.

- Então, como vai ser, André? – olhou-o por cima das lentes dos óculos.

- Não me chame mais assim. Esqueça esse nome. – rosnou entredentes.

- Certo, desculpe, Rámon.

- Ué, não acertamos tudo já? Que detalhes restam a tratar?

- Bom, vamos repassar e pingar os últimos is.

André revirou os olhos. Aquele jeito de falar era esquisito, nunca acostumaria. Detalhes de uma vida inventada. Mas, que logo se tornaria real. Logo.

- Você já fala fluentemente espanhol. – prosseguiu o doutor – Aprende rápido.

- Sempre tive facilidade com línguas e meu inglês é melhor ainda. Onde vivia tinha muito estrangeiro de férias. Apenas não domino a gramática. Nem da minha língua natal. – era estranho falar assim do lugar onde nascera, para o qual não pretendia voltar nunca mais.

Destino Íntimo - A Um Passo do Eu - Livro 2 - DEGUSTAÇÃOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora