Episódio 07 - Origens II

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Os demais grupos seguiram em suas disputas se utilizando de seus poderes para a destruição dos semelhantes, em uma evidente subversão aos desejos das divindades que os abençoaram para que defendessem suas justas causas, desonrando a memória daqueles que lutaram lado a lado em prol da manutenção da vida em um mundo tomado por entidades malignas. Eras se passaram e a Nação Independente provou cada vez mais ser um sistema social funcional, expondo que progresso algum seria alcançado através do derramamento de sangue. O exemplo dos Independentes levou os clãs enfraquecidos pelas inúmeras perdas a criarem um acordo de mútua cooperação, em que as potencialidades de seus membros seriam somadas para o estabelecimento de uma sociedade onde todos teriam garantias igualitárias de proteção, alimento, direito à terra e às riquezas. Assim, a ideia de uma nação que abarcaria os demais clãs e traria paz entre os povos ganhou a aprovação da maioria, culminando na criação da Grande Nação, que mais tarde tornou-se a Nação de Acalla.

A Grande Nação tentou replicar a estratégia bem-sucedida da Nação Independente. Nas eras iniciais, as chagas da guerra estavam latentes nos corpos mutilados daqueles que precariamente conseguiram proteção de alguma forma, e cravados na alma de cada cidadão que tinha uma história terrível para contar sobre os pesares e as agonias vividas naquele período. Manter o pacto verbal era do interesse coletivo e assim a jovem nação cresceu e se expandiu, sua população aumentou exponencialmente com a divisão das riquezas e as magias performadas por seus membros se misturaram como nunca, ultrapassando as barreiras ideológicas dos clãs. O controle da nação ficou a cargo dos anciões por estes serem figuras de autoridade respeitadas por todos, o que ajudou a manter a ordem nos primórdios da nova sociedade.

No entanto, sendo a destruição a base da natureza humana e de suas relações, a humanidade não foi capaz de sustentar a ordem através das eras. O passar das gerações e o distanciamento histórico das chagas da guerra não trouxe aos descentes da dor a urgência de permanecerem fiéis ao compromisso do estabelecimento da paz. A falha dos ascendentes em manter viva a história do seu povo não foi apenas um equívoco, foi essencialmente uma escolha, uma maneira perigosa de silenciar o passado por medo de repeti-lo pois ninguém conseguiu elaborar os próprios traumas.

O caminho escolhido para evitar a trágica reincidência dos eventos foi justamente o atalho que levou a Grande Nação à repetição sangrenta. Com o avançar geracional a nação passou por vários conflitos nas eras em que permaneceu composta pelos dez clãs, sendo o mais marcante a caçada que culminou no genocídio bem-sucedido do clã isolado, o único inalcançado pelo sistema das nações, marcando a origem da mais jovem das três nações: a Nação Exilada. O extermínio da Tribo do Sangue fez com que a metade dos clãs deixassem a Grande Nação e seguissem para o oriente ocupando as terras do Leste, território onde se estabeleceu aquela que viria a ser a mais populosa e controversa nação do mundo mágico.

Enquanto a Nação Independente surgiu da busca de seus clãs pela paz e pela proteção, a Nação Exilada nasceu da guerra, da busca pela promessa de igualdade inalcançada na Grande Nação e por sobrevivência; em outras palavras, enquanto um grupo se uniu para minimizar os impactos da natureza destrutiva da humanidade sobre os teus, os demais fundamentaram os pilares de suas nações sobre as bases da violência.

Violência intensificada pelas causas legitimadas graças a matança sem precedentes cometida por um governo autoritário contra o seu próprio povo. O sentimento exilado de injustiça era acentuado pela avidez por reparação, mas como pode um povo enfraquecido, acometido pela morte e pela fome fazer frente a uma nação tida como grandiosa em todos os seus aspectos? Os ataques exilados eram inexpressivos e desorganizados, a Grande Nação dispunha de artifícios que criava uma disparidade injusta, retalhando sempre com força desproporcional causando mais estragos do que o dano real que os rebeldes isolados conseguiam infligir.

Havia entre os próprios exilados a ausência de um consenso sobre como prosseguir. Parte dos grupos desejava o cessar da guerra para a reestruturação de seu povo, enquanto minorias mais radicais seguiam em suas tentativas malsucedidas de causarem dano real à Grande Nação. A proposta do firmamento de um pacto surgiu por parte dos Independentes, estes prestavam ajuda humanitária aos exilados que tentavam se reestabelecer e garantir um mínimo de dignidade aos teus. O ritual que garantiria a paz de maneira compulsória visava o estabelecimento de um acordo mágico entre a liderança das nações, ao preço custoso da vida do governante que descumprisse a promessa à qual ele se conectaria pela própria essência vital.

Tentativas de convencimento diplomáticas não surtiram efeitos sobre a Grande Nação que não mantinham relações com os Independentes. Entretanto, com o avançar de muitas eras o líder conhecido pela tirania aceitou o acordo de paz nos moldes originais sugeridos pelos independentes, com o selamento do pacto de sangue que traria à existência o guardião do tratado selado, uma criatura capaz de cobrar o descumprimento do contrato nos termos da proposta firmada. Aquele foi um marco também na reforma identitária da nação que passou a chamar-se Acalla.

Para muitos não ficaram explicitas as motivações do regente de Acalla ao aceitar o Pacto de Paz, embora essa resposta tenha vindo até mim em algum momento da nossa história. Uma nação soberana que não tinha a quem temer, motivada por um evento dramático e interno resolveu ceder ao ato que limitaria suas próprias estratégias de guerra e dominação. Seja pelos motivos que fossem, o compromisso sancionado colocou um fim aos ataques coordenados pelas lideranças das nações.

Eventualmente, com a ascensão da nova regente ao trono e os povos sob o Pacto de Paz, os anciões dos clãs de Acalla decidiram romper com o passado brutal propondo que a história ficasse registrada na memória de cada cidadão que compunha aquela sociedade. Motivados pela necessidade da superação e guiados pelo anseio em levar o povo a uma nova era, houve a proposição da reforma política que limitou o arbítrio da regência criando cargos consultivos e deliberativos para a tomada das decisões, garantido maiores participações representativas nos rumos da nação através de estratégias compartilhadas.

O ato de controle institucional da regente não apenas se mostrava uma medida democrática para que as providências abarcassem os interesses das diversas camadas sociais, ela também garantiria o cumprimento do objetivo original da união dos clãs que buscavam uma existência digna, mas havia mais. Subjetivamente, a criação de novos poderes reguladores se deu primariamente pelo temor de que a herdeira direta da linhagem tirana escolhesse seguir os passos de seu pai, mas ela parecia dedicada ao novo futuro mesmo sem ter plena consciência que aquelas rédeas foram criadas para si.

Propondo medidas precisas para o fim ideológico do reinado atroz de seu antecessor, a princesa Liera em seu primeiro ato administrativo deu de presente à nação a punição ao clã de seu pai, banindo toda e qualquer organização mentalista e recriminando as manifestações de adoração à entidade que ela mesma representava na condição de anciã. Um movimento ousado por parte de alguém diretamente ligada ao sagrado, mas a nova rainha nunca se mostrou uma amante da tradição e dos velhos costumes, rompê-los seria o único caminho para a construção da sua própria identidade regencial.

A renovação das práticas religiosas visava fomentar a mudança de hábito, chancelar o compromisso com o futuro aceitando a responsabilidade pelo passado. O rompimento com o tradicionalismo e com o sistema das entidades gerou reações, houve aqueles que discordaram em silêncio, houve ainda aqueles que seguiam venerando em sigilo ao único e verdadeiro "Deus da Mente", seja por apego ao passado ou pelos interesses em manterem vivas as práticas tirânicas não apenas em suas memórias, mas em seus atos, com o argumento de que o passado e a tradição mentalista foi o que tornou Acalla grande. Grandeza que significava poder. Poder que nem todos estavam dispostos a abrir mão mesmo em benefício à existência de seus semelhantes. Grandeza usada para a destruição.

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AcallaWhere stories live. Discover now