1. Ísis

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Como surgiu vida a partir do inerte? A ciência talvez nunca descobriria, pois isso estava além dos desígnios dos homens. Todavia, a humanidade, enquanto ser vivo, foi presenteada: veria a vida germinando e também seria ativo nisso. Era em meio a essa dádiva que Ísis estava imersa.

Seu companheiro perdeu o sopro da vida, mas o passara adiante. Cumprira o fim da existência segundo a seleção natural. Um luto que talvez Ísis só tenha superado por aquelas em seu ventre. Seu amado ainda era vivo em sua descendência e ela não via a hora de falar às filhas sobre o pai maravilhoso delas.

Eram trigêmeas e a mãe não pensou duas vezes: homenagearia a constelação das Três Marias. Seriam nomeadas como Maria Mintaka, Maria Alnilam e Maria Alnitak. Ansiava tê-las nos braços e mostrar no céu as estrelas que representavam, para lembrá-las de serem tão brilhantes quanto os astros.

Aquela gravidez foi resultado de anos tentando. Passando dos quarenta, Ísis pensava ser tarde demais. Pensamento que virou certeza após o atropelamento de seu marido. Entretanto, foi agraciada com um milagre, pelo qual faria de tudo.

Com a aproximação do parto, a rotina de Ísis envolvia os preparativos finais para as crianças. O quarto delas era constantemente modificado. Andava agitada, pensando em erros no dormitório. Frequentemente, chorava pela saudade do finado marido. Devido às dificuldades, tanto seus pais quanto seus sogros estavam assistindo-a.

Anteriormente, era cozinheira num quilo do Centro. Alto movimento, por razões óbvias. Estava há semanas afastada daquela muvuca, quieta no seu bairro residencial. Assim vivia, tentando se convencer de estar melhor do que há um ano.

Anoitecendo, recitava um conto. Queria que as três Marias conhecessem o prazer de escutar uma história. Nesses momentos, reacendia sua vontade de conhecer lugares encantadores. Fazia o possível, viajando por meio da alimentação. Sua Bíblia era um livro chamado "A volta ao mundo em 80 receitas".

Uma prática que Ísis considerava necessária e tentava adquirir naquele momento era escutar música. Sabia ser científico tratar-se de um hábito saudável. Além disso, não discordaria do ditado sobre remediar a alma enquanto seu espírito ansiava tratamento. Aliava sua viagem gastronômica a uma viagem musical e, assim, introduzia às filhas toda a diversidade terráquea.

O parto foi um borrão. Que estranho! Acontecera violência obstétrica? Lembrava-se das estrelas: constelação de Órion e três Marias em seu cinturão. Como enxergaria o céu num hospital? Bizarro...

Esperou em vão alguém voltar com as crianças para amamentação. Por mau pressentimento, perguntou onde estavam suas filhas.

– Hã?! Você não veio fazer uma laqueadura? – responderam.

O corpo de Ísis travou. Não sabia o que fazer e se desesperou. Queria as meninas que nunca viu, porém, sabia ter carregado no ventre. A continuação do marido que tão cedo lhe arrancaram. Não aceitaria tal mentira tosca.

– Elas morreram? – balbuciou chorando. – Querem esconder de mim, mas aguento. Podem falar...

Ninguém mencionou natimortos, insistiram na laqueadura. Ísis entrou em pânico e derrubou tudo ao redor. Por que não contavam a verdade? Não houve escolha além de sedá-la. Novamente, Ísis viu a constelação de Órion com as três Marias em seu cinturão.

Quando acordou, decidiu jogar com eles e aceitou a laqueadura. Desse modo, permitiram a visita de seus pais.

– Filha, tudo bem? Achamos estranho fazer uma laqueadura agora, mas não interferimos. Pelo jeito deveríamos ter agido... – Seu pai soava preocupado.

– Desculpa, querida. – disse sua mãe.

Seus pais não mentiriam, não é? Ainda mais depois do surto... Era nisso que tentava acreditar. Algo de extraordinário acontecia, uma magia alterando memórias. Era a única explicação, mesmo não sendo plausível. O pânico a dominou. Conseguiria lidar com o sobrenatural? E por que se lembrava das filhas? Naquele instante, soube como era o impulso da automutilação.

Teria realmente se cortado caso, no instante seguinte ao qual foi abandonada, um portal não tivesse se aberto. De dentro dele, saiu um homem desconhecido e apressado.

– Você deve estar confusa. Olha, entrando por esse portal comigo, esclareço tudo. – disse confiante.

Considerando a loucura daquele dia, Ísis não hesitou em atravessar o portal. O estranho prometera a verdade e era exatamente o que desejava. Onde estavam as três Marias afinal? Suspeitava estar na aurora de uma grande aventura.

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As três MariasWhere stories live. Discover now