Essência 1

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Engraçado, quando sua vida está chegando ao fim realmente um filme em sua cabeça. Sempre achei besteira quando falavam isso, mas agora que meu sangue flui como água, eu me sinto um idiota por duvidar disso. Meu nome é Xangô, eu vivi uma vida de arrependimentos, mas como se faz todos os dias, eu continuei seguindo em frente. Você pode achar que esse é um nome grandioso para um homem que está se afogado no próprio sangue, mas a escolha dele foi de caso pensado, para mim.

Meu nome original, aquele que me foi escolhido por meus progenitores, era Arthur. Fui um órfão que não lembra nada sobre aqueles que me colocaram no mundo e sinceramente eu não poderia me importar menos. A vida que vivi me fez remoer ódio por muito tempo, hoje é apenas indiferença. Cresci em um orfanato, uma vida desgraçada em um lugar desgraçado para uma criança. Não quero insinuar que todas as instituições de acolhimento são péssimas, são de fato indispensáveis, mas o abrigo "Leão de Judá" era um lugar especial. Era um orfanato que poderia facilmente personificar tudo o que há de ruim nesse tipo de ambiente.

Fui muito maltratado naquele lugar, pelos adultos, pelas crianças, mas principalmente pela diretora. Você pode pensar que após atingir sair daquele lugar tudo iria ficar melhor, mas você está enganado. Primeiro que eu nunca fui adotado, não sei dizer o motivo, vez ou outra aparecia alguém que queria iniciar o processo, mas acabava escolhendo outra criança. Segundo que um desastre aconteceu ao orfanato antes que a minha maioridade chegasse.

Monstros começaram a aparecer para todo o lado. Sim, você não entendeu errado, monstros, como naquelas histórias de fantasia. Os monstros se assemelhavam, no início, a animais comuns, mas que claramente estavam descolados da realidade da fauna local. Imagine no Brasil, que é onde estou nutrindo o solo com o meu sangue no momento, se ursos começassem a surgir ou quem sabe lobos, ou leões. Isso serial algo que deixaria os Biólogos e o próprios IBAMA malucos, mas foi o que aconteceu. Não eram como os animais normais, eram mais ferozes e vorazes. Atacando e destruindo tudo o que ficasse em seu caminho.

Claro que não demorou para os países, mesmo o Brasil, espedirem forças de contenção dessas criaturas. No Brasil a guarda nacional foi colocada para o extermínio deles, no Pantanal, que foi onde esses animais surgiram primeiro, mesmo sob os protestos de algumas ONGs e do IBAMA. Quem poderia culpá-los? Todos pensavam que aqueles eram criaturas que fugiram de um cativeiro ilegal na região, mas tudo mudou quando parte da força nacional foi massacrada. A mídia e a internet entram em pânico quando a maioria dos soldados perdeu sua vida. Claro, eles conseguiram sim conter os animais, mas as perdas foram enormes.

Você agora pode pensar "Ah, Brasil, né, não temos capacidade nem para conter alguns animaizinhos", mas devo dizer para você, meu país não foi o único que sofreu duras baixas. Mesmo a China e os EUA tiveram perdas irreparáveis. Alguns dos sobreviventes diziam que aqueles animais pareciam possuídos, as balas não penetravam direito a pele e mesmo a beira da morte eles não fugiam, continuavam atacando. Meses se passaram e então outra vez animais estranhos apareceram, mas dessa vez por todo o país.

A força nacional ainda estava se recuperando das baixas e havia resistência deles de irem para a luta. A presidente da época expediu uma ordem ao exército que foi enfrentar as criaturas imediatamente. O resultado foi muito pior que da primeira vez, havia a questão de que muito mais animais apareceram, mas também parecia que o generalato brasileiro tinha outras preocupações. Cargos e pensões eram as principais preocupações do exército brasileiro. Aumentar suas regalias já absurdas vinha primeiro, proteger a população viria depois se houvesse tempo. Em alguns Estados, como o Ceará, Mato grosso e mais uns dois que não lembro agora, conseguiram conter esses animais. Nos outros, porém, a situação saiu completamente do controle, levando a perda de inúmeras vidas durante os ataques.

Foi nessa segunda onda que o orfanato onde eu vivia foi destruído, por volta de 2018, não importa agora. Sem teto e ainda era adolescente, o que restou para mim, foi morar na rua. Sobrevivendo de migalhas e humilhações, como um portador de doença contagiosa. Com ajuda de boas pessoas, consegui achar um lugar para morar em um abrigo, mas era humilhado por um pedaço de pão e um banho frio. Havia um padre em São Paulo, suponho, que tratava os moradores de rua com certa dignidade, mas por fazer precisamente o que o deus que seguia ordenou, ele era tratado como um inimigo por pessoas repugnantes. Infelizmente para mim, eu vivia no Ceará, não podia me importar menos com o que acontecia em outro estado quando eu estava mergulhado na fossa aqui.

Foi só quando me tornei um adulto que as coisas pareciam começar a melhor para mim. Consegui um emprego em uma empresa de sapatos próxima, um trabalho desgraçado e exaustivo, mas eu conseguia pelo menos sair daquele abrigo e alugar um quarto. Minha vida foi assim por anos, de casa para o trabalho e do trabalho para a casa, 8 horas por dia, 6 dias por semana. O lugar pagava muito mal e as pessoas de lá queriam que você se sentisse muito grato por darem o mínimo, como se estivessem fazendo algum tipo de favor.

Acho que por volta do início de 2020 um aviso de evacuação foi dado na empresa. Monstros invadiram o lugar e estavam matando algumas pessoas no outro Galpão. A Polícia estava a caminho, mas ainda demorariam bastante para chegar. Nem preciso dizer que o caos se instaurou entre os funcionários, ninguém queria arriscar dar de cara com um monstro; então foi um Barata voa. Os funcionários correram para as saídas de emergência e foram ficando apinhados lá num empurra-empurra tentando fugir. Continuei parado onde eu estava, primeiro porque minhas pernas se recusavam a obedecer e segundo porque seguir a maré seria ou morrer esmagado, ou morrer pelas garras de desses animais que seria atraído pelo barulho.

As pessoas estavam fazendo mais barulho que as próprias máquinas, que já eram muito ruidosas. Não sei se você já visitou uma indústria ou viu algum vídeo, mas asseguro que trabalhar por dois anos em um lugar barulhento pode afetar sua mente.

Quando finalmente minhas pernas começaram a obedecer, eu peguei uma das barras de ferro que usávamos para penduras os rolos de material. Era um pouco pesado, mas servia perfeitamente como um bastão. Agora o que eu precisava fazer era fugir pelo outro lado e rezar para nenhum animal aparecer durante o caminho.

— Oxóssi, meu pai, me proteja – orei enquanto beijava um símbolo do Orixá caçador.

Enquanto passava pelo corredor por entre as máquinas, eu podia ver algumas pessoas correndo apavoradas e foi quando um vulto grande de um cachorro passou por ali. Era enorme, talvez a metade da altura de um cavalo, mas alto o bastante para notar-se por cima das bancadas das máquinas de costura. Gritos vinham daquela direção, mas eu não consegui ver nada por que a energia caiu naquele instante. Segundos depois as luzes de emergência acenderam e foi quando outro vulto, talvez maior que o primeiro, pulou a minha frente.

A pouca iluminação quase não me deixava ver nada, mas eu podia ver os brilhantes olhos vermelhos daquela coisa. Eles brilhavam intensamente, como a iluminação de um semáforo, seu rosnado era intimidador mesmo sob o barulho ambiente das máquinas. Meu corpo inteiro tremia e o medo corria por minha espinha enquanto olhava para aquela coisa.

— Porque me abandonaste pai – choraminguei. 


Escolhido do ReiWhere stories live. Discover now