Bem-vinda de volta

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Nesta transição de ares, a garota finalmente chegava ao seu pequeno isolamento, uma escola conceituada por seus princípios filosóficos e é claro, uma educação refinada que atendia às exigências da sociedade moderna. Localizada nas redondezas do centro, sua estrutura não poderia ser descrita como nada menos do que condizente com o seu renome, havendo uma certa idealização deste lugar como a escola dos sonhos para qualquer jovem da cidade que buscasse a carreira perfeita. Sendo deixada na entrada, mais um ano letivo começava para a garota ao seguir seu caminho até o interior do colégio, onde respirava fundo e se preparava para esgueirar através dos corredores, escondendo a si mesma nas multidões de rostos, mesmo que isso sequer fosse necessário. Ainda que aquele ambiente não tivesse sido o lar de memórias desagradáveis e algumas vezes tenha conseguido ser parte de seu mundinho, um espaço separado da cidade onde seus problemas não a alcançavam, havia uma estranheza nessa atmosfera, brincando com os sentimentos de familiaridade e desconforto. Mas entre as inúmeras vozes abafadas, uma ao menos pareceu ser reconhecível, e antes que pudesse se virar para confirmar suas suspeitas, foi engolida num abraço verdadeiramente carinhoso, no qual só poderia estar associado a uma pessoa, Emma, sua amiga de longa data, que felizmente conseguiu arrancar um sorriso e afastar toda aquela filosofia sombria da mente da garota num instante.

‘ Morgan! Você é uma porta quando se trata de manter contato com as pessoas, uma preguiçosa quando se trata de sair para algum lugar e é pior ainda para atender minhas ligações, cogitei ir pessoalmente na sua casa te chutar pra fora da cama nos últimos dias.’ Se deixando levar pela reunião, abraçou sua amiga, mas também não deixou que todo aquele afeto continuasse por mais tempo, temendo sufocar de tanto amor.

‘ Qual é, você me faz parecer uma desalmada desse jeito, também estava com saudades.’

‘ E você é, fiquei morrendo de preocupação com você durante as férias inteiras, e quando fiquei sabendo que estava de volta na cidade continuou trancafiada no quarto que nem uma donzela... só falta me dizer que ficou esperando o Flōrentis ir até sua casa num belo cavalo branco para te despertar.’

Incapaz de esconder o embaraço por conta das alfinetadas de Emma, apesar de cogitar uma agressão indiscriminada, optou por apenas tampar forçadamente a boca de sua amiga com a mão. ‘ Ficar tanto tempo fora da escola de emburreceu ou o que? Já mandei você parar de falar disso a muito tempo, além do mais, eu... superei isso faz tempo.’

Destampando sua boca, aproveitando para a limpar logo em seguida, retrucou. ‘Ah sim, superou ele tanto quanto a vítima de um acidente trágico, mas chega de falar da sua vida romântica deplorável.’ Sacando rapidamente de sua mochila, quase enfiou na cara de Morgan a última de edição do jornal da manhã. ‘ Olha isso! Encontraram outro daqueles corpos bizarros! Parece que dessa vez estava completamente perfurado por uns cristais esquisitos, e todos eles começaram a aparecer desde que aconteceu aquela explosão maluca no porto do antigo setor industrial!’

Sem chance de responder, Morgan tentou lutar por sua vida com o repentino ataque com o jornal que estava sendo esfregado em sua cara, nem ao menos conseguindo ler a notícia. ‘ Odeio quando você faz isso! Fora que não é a primeira vez que algo assim acontece, provavelmente deve ser trabalho de alguma daqueles grupos criminosos, afinal para estarem conectados a explosão naquele lugar abandonado com certeza não estavam só a passeio, vem tem que parar de ficar lendo esses livros de ficção e achar que tudo é uma conspiração.’

‘ Argh... você é uma estraga prazeres sabia? Com essa personalidade rabugenta tenho certeza de que vai ficar cheia rugas e encalhada numa casa lotada de gatos, igual aquela senhora que mora na sua frente hahaha.’

   Mais uma vez tendo sua paciência testada por Emma, sem se conter desferiu um curto soco no ombro da outra, franzindo a testa enquanto formulava seus insultos. ‘ Pro seu conhecimento a Senhora Peterson é um amor de pessoa, além de ser mais culta do que um dia você vai ser! E nem parece que você...!’ Interrompendo a pequena briga das duas, o barulhento sinal das aulas tocava, obrigando a todos os alunos se adiantarem e correm até seus assentos nas suas salas.  Suspirando profundamente, ambas apenas reviraram os olhos e foram de uma vez para a carteira conjunta na qual dividiam, conversando sobre as aulas desse ano e torcendo para que não fossem tão chatas quanto as dos últimos tempos. Sem quaisquer surpresas foi um dia maçante, digno de se chamar de primeiro dia de aula, resultando num aborrecimento ocasional que sempre vinha nestes momentos tediosos de suas vidas, porém elas sabiam exatamente como resolver. Saindo da escola a todo vapor, corriam para pegar o último ônibus que partia e as levariam para a região dos pequenos comércios, onde as massas dos trabalhadores vinham aproveitar de refeições rápidas oferecidas pelas diversas lanchonetes, e é claro, os mais jovens vinham para passear e principalmente jogar nas máquinas do Little Arcade, provavelmente o único lugar com uma coleção de jogos arcade tão vasta que elas poderiam pagar, mas acima de tudo aquele lugar era uma mina de ouro para recordações felizes antes de mais nada. Juntando seus restos de moedas e trocados do lanche, compraram um generoso punhado de fichas que ambas se apressavam para utilizar, querendo fazer suas disputas e baterem os próprios recordes que haviam estabelecido, consequentemente nem ao menos conseguindo ver a hora passar, percebendo algumas boas horas depois que o céu noturno tinha tomado conta da cidade. Talvez até mais bonita do que quando iluminada pelo sol, toda aquela bela jogada de luzes conseguia extrair sua beleza arquitetônica com ainda mais glamour, mas isso também indicava que já era hora de partir, Morgan sabia que em breve seu pai voltaria do trabalho e mesmo no centro, a segurança era apenas mais uma das mentiras da cidade, pois então despedindo uma da outra, cada uma seguiu seu caminho.

Respirando o ar gelado, a garota sem muita disposição dava início a seu longo trajeto, passando por quadras, diversos tipos de carros e pedestres, faces felizes ou tristes, estressadas e até mesmo embriagadas numa tentativa de se soltar depois de um longo dia árduo de trabalho. Pode presenciar a mudança pouco sutil da cidade, sendo palpável as diferenças conforme se aproximava do lado leste, como tudo se tornasse um pouco menos brilhante, e os becos se tornavam uma visão comum tanto quanto o lixo que parecia brotar do chão. Era curiosa a maneira de que mesmo num horário tão prematuro para a vida noturna, toda a vida parecia desaparecer naquela noite tão silenciosa, curiosamente trazendo um certo reconforto para a menina ao saber que estava longe da bagunça e do problema da cidade. Contudo o que era um genuíno e efêmero momento de prazer, foi deturpado para um súbito pânico, ocasionado pela queda de inúmeras garrafas e os claros gemidos de dor de um homem aos prantos, mas que ainda não podia se ver. Sentiu em seu peito um súbito aperto que a fez perder a compostura, um reflexo natural do medo que a distanciava dos pensamentos racionais e a congelava no lugar por um instante, todavia seus próprios instintos a faziam lutar contra seu corpo, forçando-se a buscar refugiu atrás do ponto do ônibus, desejando que aquilo fosse outro dos produtos de sua mente, um temor exagerado para algo simplório como um gato de rua. Entretanto das sombras das vielas entres os prédios, emergia um homem trajado em vestes como trapos, escorado a parede ao seu lado antes de cair ao chão em seu pior estado, aparentando beirar o inconsciente pelos seus gemidos e murmúrios inaudíveis. A jovem, corajosa o suficiente para enfrentar a escuridão com seus olhos ávidos por respostas, encontrou apenas mais perguntas, dúvidas sobre como agir e pensar, porém, de nada adiantou quando da mesma escuridão se ergueu outra figura, uma de natureza singular, que mesmo naquela espaçosa distância era possível notar seu aspecto pálido, veias escurecidas e saltadas que se erguiam pelo pescoço, e olhos incandescentes que pareciam refletir a luz, porém ainda vidrados no corpo debilitado a sua frente. Incapaz de emitir qualquer som além sua respiração ofegante, nada conseguia fazer, mas as mesmas sensações que haviam feito se esconder imploravam para que continuasse imóvel, escondida do que fosse aquela coisa. O homem anormal avançou contra o corpo caído, vasculhando os bolsos desesperadamente a fim de encontrar o que tanto parecia querer, e com uma expressão de desdém, ergueu até a boca um frasco de remédio no qual entornava, deixando que as incontáveis pílulas descessem pela garganta. Emitia grunhidos como se estivesse em dor, mas só deixava transparecer feições de alívio, igual a um louco resmungou algo incompreensível, desta maneira agarrando o homem caído pela perna e se voltando para penumbra dos becos, arrastando-os de volta ao mesmo buraco de onde vieram. Morgan só conseguiu suspirar aliviada, enquanto tentava racionalizar uma ideia do que acabou de acontecer, mas com a chegada de seu ônibus, que a trazia de volta para realidade, apenas olhou para a cara da cansada motorista antes de entrar e fugir o mais rápido possível daquele vivído pesadelo.

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⏰ Last updated: Mar 28 ⏰

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