Prólogo

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Assim como em muitos outros dias, uma manhã nublada de incertezas se sucedia, trazendo consigo um frescor revigorante adjunto do odor agradável da chuva, na qual todos esperavam ter lavado ao menos um pouco das sujeiras dessa cidade imunda. Abrindo seus olhos, a garota por fim pôde ter um vislumbre das luzes que atravessavam as cortinas, iluminando seu prezado quarto com os primeiros raios do sol do dia, mas que, para seu desagrado, também a trazia de volta à realidade, onde a primeira coisa que enxergava era aquela velha mancha de mofo em seu teto, que vinha atacando suas alergias há meses sem que pudesse fazer algo. Irritada, apenas pôde grunhir e esfregar sua cara amassada, forçando-se a sair da cama enquanto ainda tentava verdadeiramente despertar e expurgar o resto da sonolência.

Agarrando rapidamente as roupas do dia sob a cômoda, se aprontou às pressas para que pudesse deixar seu quarto e, por fim, chegar à cozinha no andar de baixo, onde encontrava a figura de seu pai que, como sempre, tentava preparar algo em seu melhor humor, cantarolando desafinadamente as músicas mais bregas de seu tempo sem se importar com as reclamações dos vizinhos. Diante daquela situação cômica, não conseguiu evitar de rir e revirar os olhos para as bobagens de seu pai, abrindo espaço em sua mente para pensamentos positivos sobre o dia de hoje, mas que, por um terrível azar, não puderam durar muito tempo com a chegada do correio matinal. Terríveis pedaços de papel repetitivos, apenas mais um conjunto mensal de avisos e contas em atraso que possuíam as mesmas ameaças rotineiras de desligamento, todavia, escondido como um intruso impertinente, lá estava aquele odioso envelope ainda sem qualquer remetente ou sequer uma identificação apropriada além da logo odiosa daquela empresa. Num gatilho, um amargor lhe subia pela garganta e seu estômago revirava, ainda tinha em frescor na sua mente a visão de encontrar aqueles homens à sua porta, trazendo desculpas vazias e cheques de dinheiro, esperando que tudo isso aliviasse a dor de alguma forma. Agarrando a carta tão forte que a amassava, enfiou-a no bolso de trás e suspirou, engolindo a seco todo aquele sentimento, esforçando-se para sorrir genuinamente, recusando-se a ser guiada por aquela lembrança amarga por mais tempo.

'Bom dia', cumprimentou ela ao puxar uma cadeira para sentar à mesa, ainda lutando contra a preguiça e o desconforto da manhã.

Distraído em suas tentativas culinárias, com a repentina aparição de sua filha, assustou-se de tal maneira que derrubou a espátula que usava, assim sua mão voou para o peito num gesto dramático, como se temesse um infarto iminente. 'O que diabos foi isso?! Virou assombração agora para ficar aparecendo atrás dos outros desse jeito, menina?' Exclamou, recuperando o item para o lavar e finalmente poder servir a mesa com seu café da manhã, o que não era exatamente um banquete aos olhos, mas com certeza era farto e belo o suficiente para os dois, trazendo ainda mais conforto àquele ambiente que beirava o cinzento. Portanto, naquele clima misto de acolhimento e solidão, pai e filha se sentavam na mesma mesa, tentando segurar as pontas frágeis de sua família, ansiando por um raio de esperança que arrumasse tudo, porém com pouco assunto entre eles, outro dia sem muito progresso continuou.

Na tentativa de escapar daquele silêncio agonizante, a TV foi ligada como som de fundo, apresentando naquele horário o canal de notícias da manhã que não trazia nenhuma novidade para a garota, mas ainda escutava seus comentários sobre o clima chuvoso que se prolongaria pela estação, a crescente significativa de crimes em comparação aos anos anteriores, os comerciais divulgando os mais recentes lançamentos e, é claro, as fofocas sobre o mundo das celebridades que preenchiam a tela. Entretanto, embora muitas dessas notícias fossem fúteis, ainda conseguiam arrancar algumas risadas, oferecendo um breve alívio ao estresse diário. Passado o tempo, não foi necessário mais do que alguns minutos para que os dois terminassem de se arrumar e enfim pudessem sair de casa, entrando no carro para deixar para trás seu bairro suburbano eventualmente se aproximando do centro, um lugar completamente diferente das construções malcuidadas e ruas decadentes que caracterizavam a parte leste da cidade. Em contraparte à sua imagem, era um resplendor da importância da cidade, lar de uma poderosa indústria de entretenimento, e em seus próprios dizeres cosmopolita, recebendo uma gama enorme de visitantes que anseiam por conhecer os prédios luxuosos e infraestrutura impecável de seus bairros nobres. Esta seria Little Heaven, uma cidade de sonhos próspera, berço do que é considerado moda na atualidade, criadora de tendências inovadoras, um verdadeiro pedacinho do céu na terra que nada mais é uma mentira meticulosamente construída, impossível de ser desmentida após tantos anos, restando para seus verdadeiros moradores apenas aceitar sua sentença enquanto assistem as calamidades tomarem palco em seu lar.

Little HeavenWhere stories live. Discover now