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Ela puxou o lençol e teve que engolir a emoção, deparando-se com o corpo ainda vestido daquele que durante dois anos e meio havia sido seu companheiro de profissão.

— Tem certeza de que consegue fazer isso? — perguntou Gil.

— Dilacerou a carótida — avaliou Lia Bodansky, dando-lhe uma resposta. — O corte é regular, sem sobreposições.

— Ele sabia o que estava fazendo — avaliou Gil Petersen, satisfeito, curvando-se para ver melhor. — Pode me dar uma pinça?

— Encontrou alguma coisa?

— Espero que não.

Piscando, Lia assentiu, buscando uma pinça anatômica que estava dentro da bandeja de inox.

— Não há fragmentos no ferimento. É bastante profundo, mas está limpo. Yuri sangrou até morrer — ela ponderou, inclinando-se na tentativa de enxergar o que o criminalista forense estava vislumbrando.

— Não se trata do que está no interior, minha querida, e sim o que está tentando sair.

Apanhando a pinça, Gil a direcionou até uma das extremidades do corte, enfiando a ponta cuidadosamente em uma brecha sangrenta de carne e epiderme. Ficou alguns segundos no local, explorando-o com delicadeza.

Ele umedeceu os lábios com a língua e encarou Lia com um brilho de diversão nos olhos azuis.

— Peguei — disse por fim, retirando cautelosamente a ponta da pinça. — Acho que o chefe Faraji estava dizendo a verdade.

Ambos se endireitaram diante do corpo, cada um de um lado da mesa.
Lia Bodansky sentiu uma onda de calor subir-lhe dos tornozelos até a virilha.
Suor frio brotou em sua nuca quando Gil Petersen exibiu a abelha operaria que batia as asinhas desesperadamente, lutando para escapar dos dentes da pinça.

  — É, o seu auxiliar tinha mesmo algo preso na garganta — finalizou Gil.

***

As abelhas eram insetos magníficos e tranquilos, desde que não se sentissem ameaçadas, admirou Gil, analisando o frasco que continha a pequena operária, ainda viva.

Às suas costas, Lia Bodansky costurava o corpo de Yuri Perelman, dando pontos já na altura da clavícula após cortá-lo em Y.

Gil estalou a língua no céu da boca:

— Com a precisão da sua arte, a minha teoria foi para o espaço: Faraji esteve em sua sala e desde que não significou um perigo para as nossas amigas, pôde entrar e sair sem levar uma única ferroada, tendo tempo para denunciar a existência de um enxame. Já Yuri Perelman, esteve em sua sala, entrou em pânico e despertou o instinto de defesa das operárias. O seu escritório fica ao final do corredor. Com as demais salas fechadas, incluindo essa, o banheiro masculino seria o local mais próximo e seguro para se esconder. O que não explicaria o bisturi — constatou Gil, bufando. — Somente um caso extremo de apifobia levaria alguém a tirar a própria vida numa situação parecida.

— Medo de abelhas? — perguntou Lia, distraída.

— Um medo mortal de abelhas — explicou ele, se livrando das luvas de látex. — Cada colônia possui um odor próprio, dessa forma as abelhas conseguem guardar o cheiro de casa e não errar de endereço. Se elas não retornaram para o seu escritório, para onde...?

— O bisturi. — Lia Bodansky interrompeu de repente, empurrando a mesa com rodinhas e a bandeja com os utensílios de corte para o lado. — Estamos no mesmo corredor. Oh, Gilbert! Elas sempre voltam, não foi o que você disse?

— Sobre as abelhas? Sim.

— Yuri esteve mexendo naquele corpo sem mim!

A médica legista atravessou correndo a sala de autopsias, batendo a porta ao sair.
Gil a seguiu sem titubear.

Entraram em uma das salas frias, do outro lado do corredor, onde ficavam as gavetas e a temperatura chegava a 4°C. Diante de uma das placas de identificação, Lia hesitou.
“Mary Cross”, leram em uníssono.

— A Mulher Colmeia — reiterou Lia. Ela deu um sorrisinho, achando engraçada a forma de como havia soado desrespeitoso. — Sei que acredita na ciência, Gil, e que somos adultos...

— “Ainda que voe mais de dois quilômetros para longe da colmeia, uma abelha jamais erra o caminho de volta para casa” — citou Gil, compreensivo. — Você está seguindo as evidências, Bodansky. Escute. O que elas dizem? 

Escutaram: ruídos abafados e contínuos chegavam até eles, vindo do interior da gaveta.

— Interferência — murmurou Lia. — Diz para mim que isso tudo não passa de um pesadelo...

Bodansky meneou a cabeça, segurando no puxador com firmeza. Mesmo através do látex de sua luva sentiu a frieza metálica da gaveta, o gélido agouro do necrotério. Antes de abrir, ela ergueu os olhos para o criminalista, desejando que ele dissesse mais alguma coisa. Qualquer coisa. Que usasse daquele silêncio para dizer que sabia que ela estava tendo um dia difícil, que ela não era a única a ter de enfrentar todo o tipo de bizarrice em um mundo de pessoas normais.  

Gil Petersen pôs a mão sobre a de Bodansky e como se estivessem brincando juntos pela primeira vez, trocaram um rápido olhar antes de puxarem ao mesmo tempo.

— Oh, não, não — choramingou Boo, recuando em um misto de surpresa e horror.

— Meu Deus — cochichou Gil, fazendo uma careta e tapando a boca com as costas da mão.

O corpo de Mary Cross estava coberto por favos inflamados, por onde entravam e saiam abelhas, e toda a pele era feita de buraquinhos vermelho-amarelados, que em vez de mel, transbordavam a pus.

Bodansky & A Mulher ColmeiaWhere stories live. Discover now