Doce Pecado

50 8 8
                                    

Rio Jordão, século I d.C.

A serpente deslizava o peito rubro sobre a grama ainda morna do dia encerrado, sigilosa, sibilante. Gradualmente, envolveu-se no tronco áspero de uma árvore, sentindo logo o sopro úmido oriundo do rio logo à frente.

Enrolada, por fim, em um galho alto, onde o negro de suas escamas confundia-se com a sombra do arvoredo, os olhos cor de sol encaravam distantes a noite clara. Percorreram então na direção que os raios de lua indicavam, parando de súbito na silhueta humana que agitava as águas do Jordão.

A alma, porém, como a serpente sentiu, não era humana. Emanava sobre a mata e o rio um quê de trágico, sublime. Conhecia essa essência.

Gradativamente, a cobra negra tomou forma de homem pálido, as folhas se movendo consigo. Tão cauteloso quanto subira, desceu o homem-besta, os pés descalços raspando a grama. Os mesmos olhos dourados não permitiam escapar o sujeito que, agora percebeu, estava se banhando. O corpo robusto, os cachos que prateados luziam os feixes de lua, lua essa que lhe caia como auréola angelical à cabeça; nada na vida e na pós-vida poderia ser mais divino, mais puro, o paraíso perdido.

-É você que está aí, Crowley?-o anjo de repente se virou, encarando as margens ao seu redor.

-Como soube que era eu?- A serpente do Éden saiu detrás do tronco, fazendo-se visível.- Ouviu-me chegando?

- O ar muda quando você está presente. Perdoa-me a falta de pudor, tu chegaste em um momento inesperado.

-Sabe que não me importo com isso- criaturas assexuadas como são, a definição de pudor ou a falta de tal não se enquadra em suas vidas. Mesmo, porém, se houvesse em seus corpos sexo, nenhum dos dois, afinal, se importaria. Crowley, a serpente, focava em outra parte do corpo de Aziraphale.

As costas do anjo, viradas para si mais uma vez, eram acidentadas, como o demônio notou. Não eram os rasgos verticais já cicatrizados que também possuía, indicando que um dia ali houveram asas; eram irregulares, alguns já fechados, outros ainda dolorosamente recentes.

O homem serpente fez menção de se aproximar e colocar seus pés na água, em passo que o anjo, ligeiro, lhe gritou:

-Não! Não faça isso! Essas águas, pelo o que dizem, são sagradas. Não gostaria de descobrir o que aconteceria caso uma gota lhe alcançasse.

Crowley, franzindo a testa, contentou-se em voltar poucos passos e sentar-se na terra seca, enfeitada com a branquitude de pequenos trevos.

-O próprio Cristo foi batizado aqui. O filho de Deus, lembra?- complementou, vendo o esforço que a serpente fazia para recordar-se do nome.

-Sei. Perigoso esse rio, imagino. Nenhuma cerca em volta avisando que são águas sagradas, não toque. Salvou minha pele, de novo. -Crowley transparecia pouco se importar. Havia ainda uma questão que importunava a mente.

-Essas marcas nas suas costas, anjo, o que são?

Aziraphale aproximou-se das margens, os cachos gotejando após um longo mergulho. Carregava no rosto úmido expressão desconcertada, pego de súbito por tal interrogação. Por prolongados minutos encarou a face de Crowley, as feridas lhe incomodando, como se a pergunta recordasse seu corpo de que os cortes ainda lá jaziam.
Estava ali, tão vulnerável, coberto mais de angústia que de água; não fazia sentido encobrir sua agonia daquele cujos olhos já descobriram a vermelhidão em seu dorso. Enfim respirou fundo.

-Estas marcas, Crowley, são as marcas de meus pecados. Não importa quantas vezes estas águas frias escorram sobre minha pele, nunca serão capazes de limpar minha alma.
Os pecados só são perdoados quando se arrepende verdadeiramente de tê-los cometido, e descobri-me incapaz de renunciar às minhas faltas. O pecado, Crowley, como tu bem sabes, vem como uma paixão ardente que adoece o pensamento até cedermos a ela; e depois assombra nossos espíritos e pesa no corpo eternamente. Ofereço a dor de meu corpo como súplica a Deus, a última súplica que me resta fazer, para que talvez o Todo-Poderoso perdoe esse seu anjo tão rebelde.

You've reached the end of published parts.

⏰ Last updated: Mar 25 ⏰

Add this story to your Library to get notified about new parts!

Doce Pecado | Aziracrow Where stories live. Discover now