VIII - Bigodão Roxo do Evandro e o Retorno da Energia

10 3 1
                                    

"Mãe, acho que o Procópio trouxe um namorado"

Quando a gente desperta de um sono profundo, começa a escutar os sons em volta se tornando mais audíveis e as imagens embaçadas que vão tomando forma. Aquela cara de bolacha foi a primeira coisa que meus olhos observaram, seu cabelo estava sobre meu nariz e ela me olhava com a cabeça inclinada para o lado como um cachorro curioso, saiu de perto quando notou que eu havia acordado e foi cutucar Evandro passando por entre os dedos umas mechas negras do cabelo do garoto. Emília se sentou na barriga do trator humanóide e retirou do bolso de sua jardineira um batom estranho verde.

Minha mãe sorrindo apareceu na porta, para quem vinha de um velório parecia estranhamente feliz sua expressão me parecia que iria render muitas fofocas, e eu não estava errado. Minha tia Leandra havia desmaiado em cima do caixão após chorar um Atlântico, meus primos da idade de Emília corriam para todos os lados, subiam em cima dos túmulos e quase derrubaram o padre na cova, um desconhecido chorou um Pacífico e depois descobriu que estava no velório errado. E o pior de tudo, quando iam saindo do cemitério tia Leandra desmaiou novamente e dessa vez na escada o que lhe custou uma descida mais rápida até o carro. Acredito que nesses momentos de desastre da família a velha deveria estar la em cima rindo de toda a situação.

Minha mãe sabia que eu não tinha amigos naquela escola e nem na outra, então ela queria que eu mandasse embora aquele até então desconhecido que estava estirado no chão do meu quarto parecendo um mendingo, pelo visto havia dado ouvidos ao que Emília tinha dito.

"Mãe mas é o Evandro"

"Nossa ! Fazia tanto tempo que eu não via esse menino que nem lembrava mais dele"

Puxei ele pelo braço que acordou se debatendo, pelo visto assim como a maioria dos humanos ele também esperava alguns minutos até o seu Windows reiniciar e assim ele se tocar do que estava acontecendo ao redor, acredito que por 1 minuto ele ficou paralisado com o olhar voltado para minha torre de gibis da turma da Mônica na cômoda em frente. Ela possuia uma porta de vidro e pelo reflexo o garoto observou apavorado o seu bigodão estiloso, embora estivesse um pouco torto, Evandro lançou xingamentos ao ares dos quais alguns eu nem sabia que existiam como "filho de uma geringonça". Aquilo era um batom permanente, apesar de ser verde ele mudava para a cor roxa eu não sabia se ria da situação ou se ficava admirado com aquela coisa ter mudado de cor.

Minha mãe sempre foi um tanto piadista era a primeira a dar risada das desgraças alheias, isso foi um tanto traumatizante em minha vida já que, sejamos autênticos, não há como ser sempre sincero e dizer as coisas na lata para uma criança, lembro-me como se fosse hoje o dia que cheguei da escola e havia pintado um desenho que olhando por agora era realmente feio mas eu tinha 5 anos e minha mãe simplesmente me disse "Procópio, se Van Gogh pintasse desse jeito o coitado não ficaria famoso nem antes e nem depois de morto", eu não sabia quem era Van Gogh muito menos quem era ele, nem sequer havia entendido aquela frase e o real sentido apareceu quando achei o bendito desenho no meio das minhas bagunças guardadas em uma caixa, foi um trauma que estranhamente estava programado para aparecer anos depois como quando a gente não entende uma piada na hora e vem a entender anos minutos, dias ou até anos depois.

"Ficou bonitão de bigode roxo"

"Por favor me diga que isso sai !"

Seus olhos verdes pareciam querer saltar das órbitas de pavor, no fundo eu conseguia me colocar em seu lugar e eu também sei que entraria em pânico ainda mais por lembrar que amanhã sairiamos cedo para ir a escola, já posso imaginar aquele nojento do Pimenta tirando sarro do coitado e mais nojento ainda é ver o sorriso e os dentões do Willy roídos de cárie.

"Mamãe disse uma vez que não sai"

Realmente aquilo não sai nem com reza, pensa em um negócio que parece entrar por baixo da pele. Já estava anoitecendo e o coitado começou a esfregar aquilo com uma bucha, parecia disposto a arrancar o batom nem que precisasse tirar a pele junto. Eu me encontrava naquele momento junto com ele no banheiro sentado na tampa do vaso sanitário, é óbvio que qualquer um que visse aquilo iria pensar besteira mas acredite eu realmente só estava ali porque aquele panaca estava com medo de ficar sozinho no banheiro e encontrar uma loira o encarando pelo espelho ou simplesmente uma versão de Samara do Vaso, o cenário não era convidativo a alguém que estava com medo até porque minha mãe nos deu uma vela e a deixou em cima da pia, o rosto meio iluminado de Evandro no espelho já fazia o próprio se estremecer enquanto esfregava o rosto de olhos entreabertos.

Por outro lado, eu estar com ele não mudaria coisa alguma acho que na mente dele eu lutaria um boxe com a loira do banheiro e a Samara viria de brinde, inclusive eu estava sentado na tampa do vaso sanitário porque Evandro cismou que ela iria sair dali para ataca-lo pelas costas. Pela janela do banheiro eu via aos poucos tudo se escurecendo ainda mais, era por volta das nove da noite e as paredes tremiam com o ronco do meu pai, esse que chegou foi direto tomar um banho e capotou na cama logo em seguida.

"Essa merda não vai sair mesmo"

"Se lascou"

Ele desistiu de tentar tirar o batom e seguimos para o meu quarto, um vento gelado me fazia arrepiar dos pés a cabeça. Evandro passou por aquele pequeno caminho feito um flash fechou a porta e colocou a vela no chão no meio do quarto agora sim aquilo estava parecendo um ritual. Eu não entendia o porque de tanto medo e, cá entre nós, tinha a sensação de que o Palmitão pularia junto comigo na cama, tive essa impressão no momento em que ele parecia ter se lembrado de que os fantasmas constumam se esconder embaixo da cama e a vista dele era essa até porque ele estava quase embaixo da minha cama.

Por volta das três da madrugada a minha impressão se tornou realidade, estávamos um ao lado do outro ele com os pés para a beira da cama e eu ao contrário. Eu estava fedendo a suvaco e vergonhosamente falando não havia tomado banho desde sábado a tarde, naquele momento agradeci de que aparentemente Evandro não estava também e era estranho o fato de que mesmo assim ele ainda estava cheirando a perfume. Não eu não estava o cheirando. Apesar do cheiro do seu perfume ser bom eu não estava o cheirando por querer ! Bom, voltando ao fato de eu estar fedendo a suvaco, acredito que está se saindo um bom repelente contra os pernilongos que toda noite insistem com a sua única música zumzum atormentar o meu sono. Nenhum estava me incomodando, será que eu estava tão fedendo assim?

Fedendo ou não aquela não era uma boa hora para tomar um banho, eu tentei voltar a dormir mas aquela luz abençoada clareou os meus olhos e - Caramba ! - por uns segundos não conseguia mais abrir os olhos me senti em uma caverna escura, um humano longe da civilização moderna. Finalmente a energia havia retornado, malditos seres deviam estar passando o final de semana nas festas e se esqueceram dos pobres coitados moradores desse bairro. Eu corri para a sala e não me importava mais a hora queria assistir minha série e colocar meu pocket para carregar não aguentava mais ficar longe da minha bomba.

Falando nisso, não foi nada fácil achar e minha memória de idoso me impedia lembrar em qual momento tinha o escondido tão bem dentro do armário da sala. Ah ! A televisão parecia até maior naquele momento !

Enquanto eu me mantinha vidrado na série escutei sons de passos no corredor e ignorei, num piscar de olhos Evandro passou correndo em minha frente parecia estar fugindo de alguma coisa mas eu sabia que não estava com medo já que não deu nem um piu e ignorou por completo a minha existência na sala. Assim como eu, o Palmitão quando notou que a energia havia voltado correu colocar seu celular pra carregar, eu estava doido para liga-lo e ver alguma novidade mas sabia que eu não tinha amigos e não veria nem sequer um mensagem direcionada a mim a não ser uma notificação de cobrança de bancos ou sobre cartões, sendo que eu nem sequer tinha um.

"Me empresta um carregador?"

"Ali em cima tem um"

O resto da madrugada já esquecendo de qualquer medo ou qualquer outra coisa passamos assistindo até pegarmos no sono largados e sentados no sofá feito um gato que se duvidar dorme até de pé. Evandro aparentava ter esquecido do bigode em seu rosto e eu preferi não tocar no assunto.

You've reached the end of published parts.

⏰ Last updated: Apr 15 ⏰

Add this story to your Library to get notified about new parts!

Procópio Não Gosta Desse NomeWhere stories live. Discover now