III - Charles, o pimenta.

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Era como se um portão tivesse sido aberto e uma boiada escapado, a diretora parecia uma boiadeira em meio a multidão era incrível como ninguém havia a empurrado, seria um trágico acidente e me pego imaginando se algum aluno iria visita-la ou talvez quisesse saber como estava o estado dela. Em meio a todas essas pessoas malucas me sinto o mais normal possível, empatia ja não existe nem o nome e manter uma amizade em meio a esse caos é um trabalho difícil já que sempre um mandado dos quintos aparece com sua energia ruim para destruir alguma amizade. Há anos que não mantenho um contato com alguém por mais de dois dias, já fui pego por pessoas se referindo a mim de um modo nada agradável e isso me desgastou ao ponto de querer ficar o mais longe possível desses indivíduos que não vão acrescentar nada na minha vida. As pessoas são corrosivas.

De longe deixo meus olhos entre abertos tentando encontrar Evandro no meio desses seres, perto a uma lata de lixo o encontro e vislumbro ele mexer em seu cabelo encaracolado castanho escuro e comer suas unhas nervosamente tão rápido quanto um cupim devorando um móvel antigo maltrapilho. No mesmo instante em que me movo em sua direção ele se senta no banco do outro lado da lixeira, tão rapidamente de uma forma que pensei que ele estivesse passando mal e que sua pressão houvesse ido ao centro da terra em segundos, não seria algo estranho já que o sol estava ardendo em minha pele.

"Oi"

Seu olhar sobe de meus pés e fitam meus olhos, suas pernas se mexem como sinal de nervosismo e eu tento pensar em algo que houvesse acontecido para ele querer me contar algo tão urgente.

"Cara lembra daquela foto da gente na casinha de bonecas da minha irmã?"

"Ãn?"

"Da gente sentados em uma mesinha tomando chá com os ursinhos e com a cara pintada?"

"Ah... mas o que tem?"

"Você não viu? ele não te mostrou?"

Com o celular na mão ele entra em suas mensagens por email, foi então que vi aquela foto que a muito tempo não via, lembro daquele dia como se fosse ontem. A irmã de Evandro tinha uma casinha de bonecas em tamanho real, visto por hoje percebo o quão pobre eu era em meio a eles, a mesa lilás se ponderava em cima de um tapete felpudo em formato de ovelha entre as seis cadeiras três eram ocupadas por pelúcias, um mundo esquisito onde Shrek, Coragem o cão covarde, um macaquinho desconhecido e George o curioso tomavam um chá em uma tarde calorenta. Eu e Evandro éramos "caçadores de ursos" e estávamos infiltrados para escutar informações que eram passadas durante o chá. A mãe deles entrou calmamente, aliás; nunca vi alguém ser tão calma quanto ela, enquanto estávamos distraído ela tirou a foto e foi naquele único dia a única vez em que a vi.

"O Charles achou essa foto em um antigo perfil da minha mãe"

"Não estou entendendo nada"

"Incrível como mesmo passando todos esses anos e essa sua lerdeza ainda continua a mesma"

Naquele momento estava com vontade de pegar uma passagem só de ida pra qualquer ilha bem longe de todos que me conhecessem, ou até mesmo me esconder em um guarda-roupas e permanecer sabe se la até quando, o que era consideravelmente mais viável para mim. Me sento no banco de forma desajeitada inclinando meu corpo para a frente e fito o chão onde vejo uma formiga passar com pressa, a folha verde chamativa parecia ser tão pesada quando tentar carregar um sofá nas costas.

"E agora o que a gente vai fazer?"

"Não sei, vou ser zoado o resto da minha vida no colégio, já nunca foi boa mesmo"

"Ele ta passando ali"

Meus olhos vão de encontro até o menino tão branco que chegava a ser vermelho naquele sol escaldante, alto e magro como eu, ruivo e cheio de sardas no rosto, ele parecia uma grande pimenta ambulante. Não entendo como um menino tão estranho e bobão como aquele poderia colocar medo em todos da escola acho que até eu se saísse por aí maltratando os alunos mais novos seria considerado um popular. Me sinto uma planta e ele um zumbi que vem em minha direção lentamente para me destruir, penso em correr o mais rápido dali meus pés fazem força contra o chão em um movimento de me levantar mas Evandro me puxa pelo braço e me sento novamente. A sombra que se projetou em um de meus braços quando Charles se posicionou em nossa frente como uma estátua aliviou o sol que insistia em avermelhar minha pele, pôs a mostrar seus dentes de milho estaria ali o tal sorriso amarelo, em um riso sem graça mas ao mesmo tempo assustador ele começou a nos insultar com palavras que não valem a pena serem mencionadas, tão inúteis quanto ele.

O copo de milkshake amarelo foi de encontro ao chão e com um riso ladino ele mandou que eu o pegasse e jogasse na lixeira, certamente me recusei. Suas mãos magras logo apertaram fortemente meu braço direito e sem ter escapatória acertei um soco um tanto fraco em seu nariz que passou a jorrar sangue, me assustei com a situação e ao olhar para o lado notei que Evandro estava tão assustado quanto eu mas se mantinha estático ao olhar aquele sangue todo, estava ficando branco como uma folha de papel e lembrei que desde quando éramos amigos ele tinha muito medo de sangue, para evitar que algo pior acontecesse peguei-o pela camiseta e quase o arrastando corri de um jeito abestalhado as pessoas que formaram uma roda em nossa volta, tão rapidamente que eu nem sequer os haviam notado, logo foram abrindo passagem como em um clipe ficando toda uma "passarela" em meio aquela bagunça.

Quando estávamos passando pela última pessoa daquela fila pude escutar Charles gritar nos ameaçando:

"Vocês me pagam ! E fiquem sabendo que a foto está aqui ainda !"

Agora, sentado em um banco de praça e ouvindo insultos vindo de Evandro que havia perdido seu ônibus e não queria ir a pé para casa que ficava ha uma hora de distância na cidade vizinha, estava quase chorando de desespero.

"Que merda cara como é que vou voltar embora, vou ter que ficar igual um mendingo dormindo aqui"

"Para de ser exagerado, você tem mãe e ela tem um carro"

"Ah, um carro. Ela ta viajando e não tem ninguém pra vir me buscar !"

"Vá a pé"

"Vai se fuder Procópio"

Rápido como o flash ele se levantou e foi andando em uma direção qualquer sem ter o que falar fiquei o olhando se distanciar cada vez mais em seus passos desengonçados e seu cabelo começar a molhar com a chuva que havia chegado, o menino estressado pareceu resmungar com ódio levando suas mãos para a cabeça puxando seus cabelos parecia um louco que tinha acabado de fugir de um hospício. Era sexta-feira e se não aparecesse alguém para busca-lo teria de ficar perambulando por aqui até segunda, é claro que esperava mais dele por ser um bem de vida mas aparentemente já não era como anos atrás senti uma pontada de pobreza em seu desespero ao perceber que havia perdido o único ônibus que o levaria para casa sem custo nenhum.

"Ei, Evandro espere !"

"O que você quer?!"

"Vem pra minha casa, ficar andando pela rua parecendo um louco não vai te fazer se teletransportar de volta pra sua casa"

"Eu não!"

"Pois bem, fique aí na chuva"

Minha casa ficava ha cerca de 2 quilômetros dali, não era muito longe mas com chuva parecia ser um caminho muito longo. Quando já estava virando a esquina e andando rapidamente olhando para baixo escutei passos correndo atrás de mim vindo em minha direção logo parei no meio da calçada de paralelepípedos e olhei para trás. Lá vinha Evandro em uma corrida torta e estranha.

Procópio Não Gosta Desse NomeWhere stories live. Discover now