VI - Sem Energia, Rumo ao Centro

17 7 0
                                    

27 de Agosto de 2022

As uma da madrugada a energia não havia voltado e o sono também não tinha chegado. As gotas de suor escorriam pelas minhas costas enquanto eu estava deitado de lado na tentativa de me refrescar naquele chão fresquinho, Evandro estava mais a frente e parecia inquieto movia seus braços parecendo estar incomodado com algo que vinha de dentro que eu não era capaz de enxergar. Um pernilongo gordo pousou em meu braço e eu observava ele descer seu ferrão lentamente, um plaft o fez estourar e o sangue se espalhou. Evandro soltou uma frase que não pude ouvir e retruquei para que ele repetisse.

"Me desculpe Procópio"

"Pelo o que?"

"Por ter pegado seu diário"

"Você leu alguma coisa?"

"Quase tudo"

Droga ! Eu sabia que uma hora ou outra ele iria tocar nesse assunto mas preferia ser um idiota a pensar que ele não faria isso. Meu diário guardava coisas que ninguém sabia e agora Evandro sabe, seria tarde demais para faze-lo meu prisioneiro no porão? Com um pãozinho seco e água acho que ele sobreviveria la por duas semanas e até esqueceria do que leu. A janela estava aberta e eu conseguia ver que ele me olhava firme esperando que eu lhe respondesse mais alguma coisa, mas um nó se recusava a ser engolido e minha mente vagava pelos planos infalíveis e fúteis para tentar fazer com que o garoto esquecesse mas não era possível simplesmente dar um sumiço com a sua memória.

Me pego agora pensando o que eu encontraria se fosse capaz de entrar na mente de Evandro, se imaginar que tudo fosse como um cenário de cinema e cada lugar fosse dividido em sua cabeça. Poderia estar perambulando por um mundo aleatório do Minecraft e de repente despencar para dentro de uma caverna e cair em um anime daqueles com conteúdos duvidosos, ou simplesmente estar de frente a uma tv assistindo um programa de culinária. Aquele garoto era incrivelmente tão aleatório como eu mas fugia da minha aleatoriedade, que era tão maluca quanto a dele.

Ele se sentou. Percebeu meu silêncio e me pediu desculpas mais uma vez, já não se tinha mais o que fazer então larguei de pernas para o ar e apenas torcia para que aquele abençoado não contasse para ninguém. Não fiz questão de ter que responde-lo mas sentia que ele novamente esperava por alguma resposta, o se emergiu pelo quarto silencioso. Minhas pálpebras começavam a ficar pesadas e lentamente foram se fechando como uma onze horas as meio-dia. Derrepente estava sonhando que Dário podia falar e que estava aprisionado por Charles que segurava uma tesoura e ameaçava cortar suas folhas, meu diário derramava lágrimas, e bizarramente suas páginas não se molhavam. Mas que belo sonho de quinta, um sonho de camelô !

Por volta das três da madrugada eu despertei, Evandro dormia profundamente e até roncava como um fusca. Estava com a boca seca mas me recusava a levantar e ir até a cozinha naquele escuro, olhei ao lado e os números verde neon no relógio indicando três e quinze me fizeram ter mais medo ainda, não queria dar de cara com um ser maligno ocupando a minha casa. Os últimos resquícios de saliva molharam com dificuldade minha garganta que ardeu, comecei a suar frio e então me forcei a procurar água. Era sábado e todo sábado eu tinha meu dia de maratona, minha prima de 7 anos me xingou de homo habilis quando eu simplesmente disse que não assistia a uma série que ela passou a venerar, e eu nem sequer sabia o que era aquilo mas como aquela mini tia amava história eu imaginava que poderia ser algum ser primata, eu realmente não entendo nada de história e ja fui humilhado por uma professora quando não soube como responder o que era um fóssil.

Se a energia não voltasse até de tarde eu perderia essa minha maratona e isso me fez desanimar ao máximo. A casa estava em um silêncio tão absoluto que eu passei a sentir falta do ronco de trator do meu pai, e de encontrar minha irmã abrindo a geladeira devagarinho achando que ninguém estava escutando mas como sempre eu estava la a espreita olhando de longe o que tinha de bom para comer, se caso não tivesse nada de interessante eu voltava para o meu quarto na ponta dos pés. Era primeira vez que eu ficaria sozinho em casa por tanto tempo eu sei que saíram na pressa e não me esperaram porque eles sabiam que eu não gostava da minha vó.

Liguei a torneira e os primeiros pingos bateram contra a pia de alumínio fazendo um barulho alto, Catarina veio correndo se esfregar nas minhas pernas achando que eu estava comendo alguma coisa, quando pensei em usar o banheiro me lembrei que a porta estava emperrada eu estava apertado sentia que mijaria nas calças a qualquer momento, se acontecesse isso não seria possível nem tomar um banho. Em meio ao desespero peguei um pote qualquer que encontrei em cima da mesa e urinei dentro dele naquele momento eu me esqueci de jogar e coloquei de volta onde estava quando um barulho de alguma coisa caindo veio da sala, era caminho para mim passar de volta para o quarto e correr o risco de me encontrar com uma assombração. Abandonei de imediato a ideia de passar por la, corri com Catarina nos braços para a varanda e fechei a porta da cozinha, até escutar o canto dos pardais e canários uma espreguiçadeira marrom se fez a minha cama.

Todo arregaçado com as costas doendo e meus braços marcados pela madeira, quando acordei sentindo que havia sido jogado em um caminhão de lixo Evandro já estava de pé e me observava sentado em uma cadeira.

"Dormiu bem?"

Incrédulo eu estiquei meu braço direito e vi a enorme marca aparente do vão das madeiras olhei para o garoto sentado a minha frente.

"Vejo que não"

O vento fresco da manhã balançou meus cabelos, la em baixo eu via os galhos de árvores e pedaços de telha que não haviam sido retirados ainda. O guarda sol amarelo ainda estava pendurada no telhado da casa da Dona Carmosina e Dona Joséfa estava tranquilamente sentada na cadeira que com o vento foi parar no seu quintal. Apesar do vendaval quase ter levado o telhado da casa das duas elas estavas todas a postos observando o bairro e xeretando a vida dos vizinhos. La na esquina onde retiraram a figueira a barulheira do trator da prefeitura vinha vindo, estava tão velho que por onde passava um pedacinho da sua lataria ficava para trás, e o prefeito desenchavido dizia para os moradores que ainda estava em ótimas condições. A barulheira chamou a rodinha da fofoca e consequentemente o trio Os Bota Medo, liderado por Pimenta e seus outros 2 amigos que o seguiam feito cachorrinhos que caíram da mudança, eram o terror do bairro todos os dias passavam jogando pedrinhas nas casas e assustando os pobres bichanos.

Desde os 2 meses em que moramos aqui minha mãe ligou para a polícia mais de 10 vezes mas, "vai tomar um chá de camomila senhora", foi o que o delegado disse, dias mais tarde fui descobrir através de uma das fofoqueiras do bairro que Charles era sobrinho dele. Podem me chamar de medroso o quanto quiserem mas eu não ouso passar perto do Pimenta ! É claro que havia ainda a questão da foto, e eu me forçava a acreditar que ele houvesse esquecido.

Eu continuava a observar o trator, ele vinha na velocidade de uma tartaruga, trazia um carretinha onde os trabalhadores jogavam os galhos. Reconheci de longe um deles, era Seu Oswaldo um senhor que paquerava dona Berenice que não perdia uma.

"Éguas ! "

Era o que eu escutava quando ele passava em frente ao portão e ela logo entrava para dentro da sua casa e deixava o pobre coitado falando sozinho, nos primeiros dias eu não entendia a gíria e achava que era um xingamento e achava que Dona Berenice entrava para dentro brava pelo fato de ele estar a chamando de égua.
O sol ia aparecendo e ja começava a queimar minha pele na varanda, entrei para dentro com Evandro e o garoto sentou no sofá da sala, enfiou a mão dentro do bolso da calça e tirou um celular que ele jogou longe ao perceber que estava sem bateria. Irritado ele se levantou e foi para a rua, pensei em lembra-lo de ter cuidado para não escorregar no seu próprio vômito no portão mas a uma hora dessas com essa movimentação de tratores arrastando a árvore uns galhos maiores acho que o vômito tinha se "limpado".

Me sentei na cadeira da cozinha e passei longos minutos fitando um macaco cor-de-rosa pendurado na porta do armário, ele parecia me olhar de volta, em meios a todos os pensamentos que invadiam minha mente tive a ideia de ir até o centro da cidade ver se lá também estava sem energia já que ficar em casa sem celular e sem TV estava me deixando louco. Peguei os trocados que minha mãe deixou e fechei as janelas, de chinelos amarelos, bermuda azul claro daqueles panos de sombrinha com desenhos pretos indecifráveis e uma regata do Hommer dando dedo eu saí andando pela calçada tranquilamente.

"Ei esquisitão que matou a moda !"

"Feche a sua boca Evandro, se quiser ir que venha ! "

"Pra onde?"

"Centro"

O caminho era enorme para sedentários e nossas pernas de cambito uma hora iriam se cansar.

Procópio Não Gosta Desse NomeOnde as histórias ganham vida. Descobre agora