𝐌𝐄𝐋𝐎𝐃𝐈𝐀 (𝐁𝐋)

𝐏𝐫𝐨́𝐥𝐨𝐠𝐨

    Navegar no mar azul era algo comum, porém, uma tarefa um tanto difícil, principalmente quando um bom navio não estava disponível. Kang Ji se encaixava nessa situação. Ele possuía uma viagem para realizar, após cumprir seu acordo de trabalho em New Heartz, a capital mundial da tecnologia, uma cidade de médio porte detentora de todos os serviços essenciais para a sobrevivência humana. Uma metrópole futurística, com riqueza digital, indivíduos cheios de estilo, um padrão de vida harmonioso e uma generosa cortina de paz.
   
    New Heartz oferecia diversos benefícios a seus habitantes, cerca de cem mil pessoas. Todavia, esse contingente tecnológico era pouco acessível para estrangeiros e, ao passar das décadas, tornou-se uma fachada bem pintada, capaz de esconder todos os problemas sociais, políticos e éticos que os governantes cultivavam. Digitalizar as vivências, experiências, relacionamentos e status fora um evento inspirado na política "pão e circo", criada pelo Império Romano. Rapidamente, a sociedade se deleitou num emaranhado de possibilidades virtuais.
   
    Kang Ji conhecia a face dos envolvidos nessa ilusão artificial. Era um mercenário, afinal, contratado por alguém importante na capital que lhe encomendou o assassinato de Xie-Wang, a líder da quadrilha que influenciava diretamente as decisões do atual governante. Kang Ji monitorava de longe uma residência, estava trajado com roupas escuras, uma bota acinzentada e um lenço preto cobrindo parte do rosto. Seu cabelo esverdeado e os olhos davam um contraste à sua aparência, pois sua pele também era escura.
   
    Sua íris direita era vermelha como um dasmco, enquanto a esquerda não possuía visão — consequência de um acidente em sua infância. Kang Ji se localizava a duas ruas de distância, no alto de um prédio em construção, observando através da mira de sua arma de longo alcance. A pequena visão concedida era suficiente para não perder o alvo. Em frente à residência, havia alguns veículos onde políticos aguardavam um último membro, justamente a perigosa Xie-Wang.
   
    Não estava claro para Kang Ji por que aquela mulher era tão perigosa, também não se interessava pelas motivações de seu assassinato. Era apenas um trabalho onde nunca fazia questionamentos. A noite estava calma, e a capital tecnológica adormecida. Grande parte da iluminação era apagada, exceto em pontos estratégicos (esquinas de farmácias, delegacias e hospitais). Já na zona leste da cidade, a escuridão prevalecia; era uma medida para manter as reuniões inapropriadas em segredo, como o horário de duas horas da noite marcado para o encontro. Contudo, Xie-Wang não seria capaz de fugir.
   
    Kang Ji estava nessa profissão desde seus vinte anos. Sua irmã e seu amigo, Lan Ji e Sun Yun, eram a única família que possuía, e que lhe forneciam apoio em seus contratos. Em seu porte estava a sniper que conseguira após alguns trabalhos, com a arma em punho, demonstrava o talento nato como atirador, não precisando de um ângulo exato, apenas de um alvo. Encontrá-lo e atingi-lo era sua missão. Seus companheiros estavam na marina em busca de um navio para partir de New Heartz, pois não era possível matar figuras notáveis na capital e viver tranquilamente — rapidamente entrariam no rastro do assassino.

    Lan Ji e Sun Yun eram experientes em furtos, caso fossem necessários; assim, obter acesso a uma embarcação seria uma tarefa bem-sucedida, e com uma rota de fuga pré-determinada e o pagamento em mãos, Kang Ji deveria apenas se concentrar na execução de Xie-Wang. Embora comprometido com o trabalho, às vezes se pegava distraído com um som místico, que invadia seus pensamentos, roubando os planos de sua missão que tanto refletia minuciosamente. Aquela melodia era o resultado de uma flauta bem tocada, numa música doce e desesperada; como se cada nota fosse a expressão de um sentimento.
   
    — Isso de novo? — sussurrou, a breve canção parecia habitar sua mente por um minuto, prendendo-o por completo, soando como um pedido de socorro.
   
    Ainda hipnotizado pela harmonia musical, teve um vislumbre, onde enxergava uma cauda branca que aparentava ser macia e volumosa, duas orelhas do mesmo tom do rabo e um sorriso travesso, sentindo que aquilo estava sentado sobre seu corpo e o encarando. Ao redor, havia várias nuvens brancas, no entanto ainda estava em terra firme, apoiando-se no gramado. Num segundo, a visão mudara para alguns passos de distância, rapidamente contemplou um oceano de águas violentas. De alguma forma, parecia que estava no céu.
   
    Kang Ji não recordava claramente sobre essa criatura, e sendo a primeira vez que "lembrava" dessa imagem, acreditava que sonhava acordado, visto que frequentemente não descansava de forma adequada por conta dos contratos. Ainda assim, esse momento tornou mais ao perceber que seu lenço de cetim vermelho (estava preso ao cano da arma) brilhou ao tocar daquela canção, deveria ser um sinal, e um problema para o jovem — que não sabia interpretá-los. Em uma tentativa de "despertar", sacudiu a cabeça e concentrou-se na visão de sua mira.
   
    Seu coração passou a bater em ritmo acelerado ao ver o carro de Xie-Wang estacionando, todos os olhares voltaram para a porta do veículo rosa, enfeitado com detalhes neon nas extremidades. A mulher usava uma vestimenta belíssima, exibia joias banhadas a ouro e calçava um salto fino, cravejado de brilhantes. A recém-chegada cumprimentava os demais convidados, ao mesmo tempo que Kang Ji se repreendeu, não havia percebido a chegada de seu "alvo" — aquela melodia o fez perder um momento do trabalho.
   
    "Um assassino jamais deve se distrair", era o seu lema.
   
    Retirou de seu bolso um supressor de ruídos e o encaixou na arma; isso conteria um pouco do som que poderia revelar sua localização. Ajustou pela última vez sua posição, o dedo pressionava cuidadosamente o gatilho, não queria correr o risco de um tiro precipitado e Xie-Wang escapar ilesa naquela noite. Sem perceber, novamente a doce melodia tentava se instalar em seus pensamentos, porém ele continuava a mover o gatilho, rumo à ativação de um disparo.
   
    O breve momento de vacilo custou a Kang Ji o primeiro erro fatal em toda a sua carreira de assassino. Percebeu através dos gritos — pertenciam a Xie-Wang — e rapidamente conferiu que sua bala havia acertado outro político, alguém que era aliado de seu cliente. Logo, um desespero surgiu em seu peito, suando bastante, acelerando a respiração a cada milésimo que imaginava ser capturado. Lan Ji e Sun Yun o procurariam e acabariam presos, pois também eram mercenários, com a cabeça a prêmio pela região.
   
    Instintivamente levantou-se e posicionou a arma. Kang precisava fugir, mas sempre cumpria seus contratos. Escutava nitidamente os seus batimentos, fortes e violentos, como se o miocárdio chocasse contra a parede do peitoral. Ao redor do corpo assassinado, os demais políticos — e o alvo — exibiam expressões espantadas enquanto meia dúzia de homens altos chegava ao local, averiguando a situação e empurrando às pressas o grupo para a residência.
   
    Aproveitando o atordoamento de Xie-Wang, que a deixou pálida e incrédula, Kang caminhou para o lado e alvoroçado disparou a segunda bala — acertando sua coxa esquerda —, a queda provocada fez o momento e situação perfeitos para que um terceiro tiro atingisse em cheio a cabeça do alvo. O jovem esfregou a testa, seguindo para o restante de sua face suada e não desperdiçou a chance de fugir, quando os seguranças preocupavam-se com os sobreviventes do "ataque".
   
    O medo consumiu seus instintos de imediato enquanto corria. No entanto, a escuridão foi seu maior benefício, e seus trajes apropriados para a ocasião não permitiriam ser alcançado facilmente.