~. Capítulo 9 .~

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aTomara!

Tudo foi esclarecido quando nós adentramos em uma espécie de armazém. O estabelecimento era simpático e possuía uma vasta variedade de produtos que as pessoas costumam utilizar no dia-a-dia. Gostei do recinto.
— Padre José, que prazer em vê-lo! — exclamou uma senhora aparentemente muito simpática. — Sua bênção.
— Deus a abençoe, Dona Helena.
Helena? Então o nome dela era Helena? Seria a mulher a dona daquela mercearia? Seria ali o meu primeiro local de trabalho?
— Preciso de sua ajuda, minha querida — ouvi o cochicho de José.
— Em que posso servir? — a dita cuja ignorou minha presença.
— Esse rapazinho precisa de um emprego — o homem foi direto ao ponto.
Helena olhou para mim pela primeira vez e em seguida abriu um largo sorriso. Incomodado e ao mesmo tempo constrangido por depender de terceiros, não tive alternativa a não ser abaixar a cabeça. Por que as coisas tinham que ser tão difíceis?
— De um emprego? — ela ficou espantada. — Mas tão novinho assim?
— Ele está passando por dificuldades — sibilou o celibatário. — O pobrezinho está sozinho no mundo e não tem o que comer, por isso precisa trabalhar para sobreviver.
— Bem, não posso oferecer muita coisa — a carioca ficou muito séria. — Quase não há o que fazer por aqui.
— Eu aceito qualquer coisa — falei com a voz trêmula e embargada. — Qualquer coisa mesmo, senhora.
— Bem, na verdade, seria muito bom ter uma presença masculina no mercado, mas eu não posso pagar um salário alto.
— Não tem problema, senhora — me precipitei. — Não tem problema, eu aceito o que a senhora puder pagar.
Ela me fitou com compaixão e suspirou profundamente. Eu estava esperançoso, entretanto mantive os pés no chão. E se não desse certo?
— Está bem, não posso negar um pedido do Padre José! — Helena voltou a sorrir, dessa vez com ainda mais entusiasmo.
Quase não consegui acreditar. Seria aquilo verdade ou tudo não passava de um sonho? Eu estava empregado? Era isso?
— Acalme-se, Lucas — orientou o religioso. — Não é sonho, você finalmente conseguiu o emprego que necessitava.
Extremamente emocionado, passei a agradecer feito uma vitrola quebrada. Tanto a empresária, quanto o padre, acharam graça do meu excesso de agradecimento.
— Ora, não precisa agradecer — ela sorriu de forma bondosa. — É um prazer ajudar.
— E quando ele pode começar? — perguntou Padre José.
— Quando ele quiser — a caridosa senhorinha voltou a rir.
— Posso começar agora mesmo se a senhora desejar — prontifiquei-me.
— Não — ela balançou o indicador da mão esquerda. — Vá descansar, você pode vir amanhã pela manhã.
— Como quiser, senhora — preferi não contrariá-la.
— Amanhã combinamos o valor do pagamento.
— Tudo bem, amanhã estarei aqui bem cedo.
— Pode vir às nove, não precisa ser muito cedo porque só abro nesse horário.
— Fechado — assenti. — Muito obrigado, senhora, muito obrigado mesmo.
— É um prazer poder ajudar — repetiu ela.
— Deus abençoe esse coração bondoso, Dona Helena — elogiou o padre.
— Este é apenas meu papel como cristã, Padre José — Dona Helena beijou a mão do sacerdote.
— Muito obrigado, Padre José — agradeci com sinceridade. — O senhor salvou minha vida, de verdade.
— Não agradeça a mim, agradeça a Deus — ele apertou meu ombro. — Foi Ele que te trouxe até minha paróquia.
— Pode ter certeza que irei agradecer.
— Tenho certeza que as coisas vão melhorar para você, confie em Jesus.
— Eu confio — olhei no fundo dos olhos dele. — E muito.
Ainda na calçada do comércio de Dona Helena, o clérigo me abençoou com o sinal da cruz. Algo em meu interior me dizia que a minha vida nunca mais seria a mesma a partir daquele momento, eu só não conseguia entender porquê.

* * *

Aparentemente aliviado, Seu Joaquim parou de me ameaçar de despejo quando soube que eu conseguira emprego e finalmente colocaria nossas contas em ordem. Fiz questão de pedir para que ele somasse minha dívida e me comprometi a fazer o acerto assim que recebesse meu primeiro ordenado.
Menos angustiado e com a sensação que minha vida enfim começara a entrar nos eixos, não consegui pregar os olhos naquela noite. Ansioso e ligeiramente apreensivo, não parei de pensar no trabalho no armazém de Dona Helena.
Como seria meu primeiro emprego? Qual a função que eu ocuparia? Qual seria o valor de meu salário? Será que aquela mulher era realmente caridosa ou tudo não passara de teatro devido a presença do Padre José?
Independentemente de qualquer coisa, eu estava grato por tudo o que ocorrera naquele dia. Embora já estivesse novamente faminto, eu não podia negar que a fome não era a mesma de outrora. O que teria acontecido se eu não tivesse entrado naquela igreja? Será que eu realmente seria obrigado a procurar comida no lixo?
Felizmente essa e outras dúvidas nunca seriam respondidas, afinal, a sorte batera em minha porta e eu já estava empregado. Daquele momento em diante, eu só devia pensar nos fatos concretos do presente, fazer planos para o futuro e deixar as marcas do passado no lugar que lhes era cabível.

Marcas do Passado: Amargas Lembranças - Em DegustaçãoWhere stories live. Discover now