O BILHETE

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"Me ame sólido, e nunca líquido. Assim, quem sabe, quando a sua incerteza surgir eu possa permanecer em ti e nunca escapar entre seus dedos.

E caso me deixe escorrer, meu amor, farei de mim combustível para queimar nós dois."

••

Havia um bilhete sobre a mesa.

E nele, escrito em caligrafia grosseira, o fim.

"Me desculpe eu não posso fazer isso"

Danilo respirou fundo, depois de amassar o pedaço de folha de caderno entre os dedos trêmulos. Ele não evitou que seus olhos chegassem até a aliança de aço que, naquele momento, pesava toneladas em seu dedo trêmulo. Pesava bem mais que o próprio coração dentro do peito. E ele continuou se partindo mais e mais a cada segundo, desfazendo-se como um prédio demolido de baixo para cima, de dentro para fora, ruindo em suas estruturas fracas lentamente, soterrando-se, deixando de ser algo estável para se tornar só entulho.

Lixo.

Descartável.

— Danilo? – a voz de Pedro soou mais distante do que deveria estar, mesmo que ele estivesse bem diante de seus olhos. Mesmo que estivesse bem ao alcance de suas mãos. – Quem mandou isso?

Ele apertou outra vez aquele pedaço de folha como se isso pudesse fazê-la desaparecer para sempre e as palavras escritas em suas linhas, esquecidas. Danilo nunca queria ter as lido, ele lamentou até mesmo a capacidade de ler.

— Fernando.

Foi a única palavra que conseguiu dizer e foi quase sádico que também fosse a mais difícil, a pior de todas em uma infinidade de palavras, nomes ou qualquer coisa no próprio vocabulário tão rico. Danilo estava oscilando entre a realidade e os pensamentos fantasiosos que faziam jus ao frio na barriga que sentia desde o dia anterior.

Por fim, todo aquele medo fez sentido.

Aquele quarto ficou menor do que era, suas roupas eram uma camisa de força e a maldita gravata amarela sufocava como se estivesse ali para acabar de fazer o que ele não teve coragem. Como se estivesse perfeita e impecavelmente posicionada para servir de foice a sua execução ou corda ao seu suicídio assistido.

Porque bem ali, vestido em seu terno sob medida e pronto para o resto de sua vida, Danilo estava morto.

Mas o que é a morte para quem morre e continua vivendo? Para quem sente a vida se esvair, mas continua respirando e se movendo e vivendo enquanto morre? Ele estaria acordado durante o velório? Ele sentiria o peso da terra? Ele veria os primeiros vermes devorarem sua carne em decomposição ao redor do coração pulsando no peito?

Fernando cantaria sua morte?

Fernando, seu assassino, manteria seu coração vivo enquanto tudo ao redor está morrendo?

— O que ele escreveu? – Paulo perguntou apenas para soar menos invasivo. Afinal, ele conhecia Danilo como a palma de sua mão, conseguia lê-lo com uma facilidade quase sem graça. Seu melhor amigo despedaçando-se bem ali, morrendo lentamente. E não havia muito para ajudar. Tomou o bilhete das mãos trêmulas, leu cada palavra atentamente e, enquanto o via morrer por amor, renasceu do ódio.

— Cadê ele?! Acho que consigo fazer o juiz esperar por mais uma hora. – a inocência de Pedro foi doce, foi terna e calma. Danilo odiou cada parte disso.

RELICÁRIO - How Do You SleepOnde histórias criam vida. Descubra agora