Capítulo Dois.

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"O inferno são os outros."

(Jean-Paul Sartre.)

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A sala de estar ampla dos Santana estava repleta de pessoas revirando araras de roupas caras, examinando joias expostas em pequenas caixinhas e explorando todos os artigos luxuosos que um dia pertenceram aos donos da mansão. O cenário de leilão era estranho; enquanto todos os convidados transmitiam aquela espécie de aura caótica, agitados, havia um algo contido, de elegância.

E, após os passos finos terem rompido a concentração das pessoas presentes, as grandes portas de madeira do cômodo se abriram, revelando o anfitrião da noite, vestido em um paletó xadrez, longo até a altura dos joelhos, num tom cinza giz. A camisa e o colete brancos, meticulosamente ajustados ao corpo, eram acentuados pelo elemento-chave: uma saia, pouco acima dos joelhos, com a mesma estampa do casaco.

— Boa noite. — cumprimentou, o tom mesclando uma tentativa de polidez e uma dura repreensão.

Seu olhar fixava-se, sério, no convidado à sua frente, que bebericava uma taça, enfeitiçado, devorando Kelvin com os olhos. O estômago embrulhou-se com a sensação familiar, mas não menos perturbadora.

Era como reviver aquele dia sombrio, no enterro de Frank.

O que ele era? Um pedaço de carne à mercê de olhos famintos?

Sentiu aquele incômodo profundo, usual, de ter sua identidade eclipsada — ou melhor, verdadeiramente esmagada — pela percepção superficial, puramente sexual, que os outros tinham dele. Até porque... Isso ocorria até mesmo quando o marido ainda estava vivo.

Quando, então, essa sensação de ser reduzido a um objeto tornou-se mais pronunciada, mais penetrante?

E, afinal, se estava incomodado, quem era ele, além dessa imagem que projetavam?

Havia alguma verdadeira essência em sua pessoa? Possuía habilidades válidas, sentimentos válidos, sonhos? Questionava-se se estaria enfrentando toda essa situação deplorável se tivesse.

— Boa noite! Senhor Santana...

Recebeu a saudação e voltou a caminhar pela multidão agitada, quase em uma marcha, impulsionado pela irritação. Seus olhos varriam a sala, capturando a atenção dos convidados, mas sua mente estava longe dali.

Estava, agora, nos quase vinte anos de casamento. Dezoito anos, para ser mais preciso.

O que ele estava pensando ao se casar aos dezessete?

Uma pergunta completamente retórica; recordava-se bem que, na época, não pensava sobre nada muito além do medo de continuar em uma vida de pobreza e insegurança miserável.

Frank um dia também foi uma promessa de estabilidade, de segurança financeira.

— Senhor Kelvin, há quanto tempo!

Uma mulher idosa segurou delicadamente sua mão. O ruivo correspondeu ao gesto automaticamente.

— Como está sua menininha?

Giulia. Sua razão de viver.

Viu-se ainda mais imerso em seus conflitos internos, ainda mais envolto em uma atmosfera de nostalgia sombria.

Porque, era verdade, desde o momento em que ela entrou em sua vida, ele se entregou completamente ao papel de pai. Sonhava em proporcionar a ela uma infância feliz e estável, com pais casados, uma família amorosa ao seu redor.

A Rifa | AU! KELMIROHikayelerin yaşadığı yer. Şimdi keşfedin