Prólogo - O adormecer da magia

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Existiu uma era em que as estrelas profetizavam e os espíritos descerravam os véus da fantasia, tocados pela força dos quatro elementos. Nestes anos, a magia reinava absoluta frente ao som ecoante do tilintar das espadas.

A vibração etérea da fantasia, que para nós é apenas mito, fazia-se presente na natureza, invisível e intangível, assim como o ar que respiramos. Infelizmente, tudo um dia deve se findar.

Assim foi com a magia que, controlada pelos homens, escureceu diante das lutas escusas pelo poder. Àquilo que preenchia o espírito foi corrompido, cobrando um preço por muitas vezes alto demais. Foi em uma madrugada de outono que isso aconteceu. As criaturas mágicas escutaram a triste mensagem carregada pelos ventos. Era como se o mundo estivesse em suspenso, desesperançado, diante de algo que não pudesse mudar.

Fadas e ninfas, resignadas perante o inimaginável, choravam silenciosamente. Suas lágrimas vertidas ao chão se transformaram em pequenos botões de rosas negras, como se daquela forma a Natureza demonstrasse o seu luto. Mas, ao contrário do que se possa pensar, ali não havia revolta. O lamento era o único som que jazia no ar, sua presença como um grito mudo sobre os cinco continentes.

Naquela noite, a lua, ofuscada pelas sombras que pairavam sobre Avalon, observava com atenção cada passo que era dado pelo personagem principal desta cena. Ele, que poderia construir mundos com um simples estalar de dedos, estava determinado a ser esquecido. Nem mesmo a mata fechada ousaria ser um obstáculo e dobrava-se perante a grandiosidade do velho mago. Suas passadas eram tão leves que ele parecia flutuar pela trilha.

O famoso cajado mágico, que tantas vezes brilhou diante o exército do Dragão, o auxiliava na subida, enquanto as pernas lutavam contra o cansaço. Gotas de suor maculavam seu rosto pálido, traçando caminho entre as rugas que o tempo havia talhado. Enxugou sua face vagarosamente e apertou os olhos na tentativa de enxergar através da penumbra que a noite proporcionava.

Após proferir uma simples ordem, uma fagulha de luz ganhou vida na palma de sua mão, iluminando o caminho. O vento se fortaleceu quebrando o silêncio, levando o fardo que parecia haver pesado sobre suas costas durante tantos anos. Quantas  vitórias havia concebido? Quantas derrotas deixara para trás?

Ergueu o rosto, virou-se e fitou pela última vez a margem de Ynnis Vitrin, o local que guardaria seu descanso. Por um momento, o coração pareceu bater mais forte, mostrando que ainda havia vida naquele que foi, é e sempre será o maior mago de todos os tempos. A subida dura e íngreme tornou-se mais fácil. A cabeça pendia para frente e os longos fios brancos caíam sedosos, esvoaçando por sua fronte. A barba alva alcançava-lhe o peito, respingada pelas gotas salgadas das tristes lágrimas que ele vertia pelo futuro sombrio e nebuloso que esperava a humanidade.

Não havia alternativa, a magia precisava ser extinta. O mago parou por um segundo e seus sábios olhos acinzentados correram apressados pelo caminho, descortinando o cenário já conhecido. Sabia ser essa a melhor solução, mas seu peito arfava em desacordo. A eterna batalha entre luz e trevas dentro de si nunca cessaria. Artur estava morto e ele nada pode fazer para impedir. Junto ao seu rei, a era onde a grande Deusa e seu consorte, Cernunnos, reinavam entre os povos, iria ruir. O véu entre os mundos precisaria ser refeito e levar consigo parte do sobrenatural existente na terra.

Conhecendo de antemão os possíveis futuros do mundo, ele gostaria de crer em outro desfecho. Infelizmente, em suas visões, nada diferente lhe foi mostrado. Era chegado o momento dos humanos aprenderem a viver sem magia. O velho mago não estava sozinho nessa jornada. A Natureza o incitava a continuar, enchendo seus pulmões de perseverança e a alma de esperança. Talvez um dia, a magia pudesse ser despertada. Enquanto isso, ele estaria em seu esconderijo, escudo e prisão, esperando que o tempo certo chegasse. Alcançou a clareira e vislumbrou a entrada da Caverna de Cristal. As horas escorriam como areia por entre os dedos e não havia mais tempo a perder. O feitiço deveria ser conjurado antes do sol nascer. 

Aquele que era venerado como o grande Merlin respirou profundamente e seus olhos focalizaram as estrelas, onde estava escrito o livro da vida. Lá estavam os sinais que precisava saber. Não podia voltar atrás. Com a certeza renovada, o mago caminhou por entre arbustos espinhosos e finalmente alcançou o destino final. O cajado foi colocado de lado e sons encantados ganharam vida, impulsionados por suas cordas vocais. Por um momento, a realidade tremeu perante seus olhos. A entrada da caverna se fez visível aos poucos diante de Merlin. A paz o invadiu e com a humildade que só os grandes conhecem, o mago reverenciou o poder que emanava daquele recinto.

Passos curtos e apressados o levaram para dentro da câmara, onde cristais dos mais diferentes tamanhos e cores pulsavam como corações disparados. Eles anteviam o que estava para acontecer. A caverna luminescente era o centro de magia daquela ilha. O poder que emanava das rochas parecia palpável. Merlin ajoelhou-se silenciosamente naquele lugar, e em sinal de devoção, uniu as mãos em frente ao peito, orando aos seus deuses, em busca do perdão de sua alma imortal.

– O nosso tempo acabou. Mas quero crer que um dia a magia será restaurada. Quando este momento chegar, se iniciará um novo tempo, onde o poder nada corromperá.

A voz do mago ecoou pela caverna e os cristais responderam, ressonando pelo ar uma infinidade de imagens futuras. Ao fitar aquele espetáculo visual, um tímido sorriso se desenhou em seus lábios finos e ressecados. O momento certo chegaria, independente dos rumos que a história tomasse. Confiante, Merlin abriu os braços e recitou a última canção mágica. Seu corpo vibrou em uníssono com a energia dos cristais, numa comunhão nunca antes vista nesse mundo. O feitiço estava lançado.

O chão tremeu com violência e a entrada da caverna foi completamente lacrada. O véu separou os mundos de forma repentina e a partir desse momento, a magia elemental não mais habitava a Terra. Quando as pálpebras do mago pesaram, um último lampejo de poder tomou forma. Um grande ser iluminado, tal qual um anjo, o tomou nos braços e embalou aquele homem cansado, deitando seu corpo magro e envelhecido numa cama de flores prateadas. Um a um, os cristais pulsaram uma última vez antes de se apagarem por completo. Junto com o último brilho, todos os seres encantados foram desaparecendo. As fadas se encostaram nas árvores, enrolando-se nas asas e tornando-se escuras lagartas. Os elfos, tomados por um sono insuportável, deitaram-se no chão e sumiram em meio à grama, enquanto os duendes se torciam, transmutando-se nas mais variadas plantas. Na terra, no ar, no fogo e na água, o encantamento ia se perdendo, dando fim a uma era de milagres.

O tempo da magia branca havia encontrado o seu fim.

A era da razão estava prestes a começar.

O despertar do Merlin - Danilo Barbosa & Vanessa BossoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora