O reencontro

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Desde enquanto arrumava as malas, Daniela ensaiava mentalmente o que diria a seu tio Leandro e como reagiria ao ver a figura de seu pai à sua frente. No entanto, nada parecia inteligente o suficiente para ser dito. Eram apenas ideias aleatórias, vindas da mente agitada de uma garota agoniada.

O caminho se fez longo, aumentando a sua tortura. A boca de seu estômago doía pior do que se estivesse doente. Ela limpou as lágrimas com a costa da mão, e tentou parar de pensar, para que Luciano não soubesse o que acontecia ali.

Chegando perto do casarão da fazenda, o rapaz estacionou o carro rente a uma cerca de madeira que cercava o terreno da casa, e deu duas buzinadas rápidas. Daniela permaneceu imóvel, olhando aquela casa de dois andares que continuava tão grande e aparentemente com a mesma pintura branca velha de seis anos atrás. Até o mesmo monte gramado não parecia ter mudado nada. Ainda possuía falhas, mostrando o chão abaixo.

Luciano desceu e tirou as malas da carroceria, já ela permaneceu dentro.

Ainda que resistisse descer, não aguentou ao ver sua avó já de cabelos mais grisalhos do que se lembrava abrindo e passando pela porta. Sentia tanta saudade daquela senhora quanto sentia de seu pai, então ela abriu a porta e correu para o abraço.

Sua avó era uma figura miúda e magra; de cabelo curto e cheio, até os ombros, num grisalho dourado, misturado aos poucos fios ainda loiros de sua juventude. Sua pele era pálida e toda manchada da idade.

— Vó — sentiu uma onda de felicidade a envolver, chegando a anestesiá-la da agonia que vinha sentindo.

Dona Edna levou o corpo para trás após um longo abraço. Sorria ao ver sua única neta a sua frente.

— Benção — pediu Daniela, unindo as mãos.

A velha as pegou com uma, levou até a boca, beijou e respondeu:

— Deus te abençoe, minha menina.

Dona Edna pousou suas mãos em ambos os ombros da neta e a estudou de cima a baixo com um sorriso bonito no rosto.

— Minha menina, como você está linda. Está igualzinha sua mãe quando era uma mocinha, só que com os traços bonitos do seu pai também.

— Obrigada, vó.

Rompeu da porta e alcançou a varanda, uma figura alta, grande e masculina. Os olhos de Daniela encontraram os do homem de imediato. O cabelo escuro comportado num corte social longo, os olhos escuros quase pretos, o modo de ficar parado, o modo de a olhar. Tudo tão idêntico.

Uma angústia a apossou novamente e a moça sentiu um impulso de correr até o carro, se trancar e voltar para São Paulo. Era uma injustiça do mundo ela ter de ver aquele homem exatamente como o pai dela era com vida; como o pai dela ainda estaria se ela não o tivesse matado.

Ele não é ele. Ele não é ele. Repetia no cérebro várias vezes. Mas os seus olhos provavam outro fato.

Daniela coçou a cabeça, jogou uma boa quantidade de cabelo para o lado e encarou aquele homem. O encarou tão aterrorizada quanto se visse seu pai saindo vivo da gaveta onde foi enterrado não longe dali. Seu estômago enrijeceu, os seus ombros se encolheram e um braço seu segurou o outro. Não tinha mais nada da menina travessa que vinha mostrando ser. Se transformou ali apenas na menininha do papai que sempre costumou a ser quando ainda o tinha por perto.

O homem se deslocou da varanda e desceu os cinco degraus com um sorriso brotado no rosto. Daniela o observava a cada passo que o aproximava dela. Sentia uma onda; um tormento a possuir. Ficou cega de horror em vê-lo pisar na grama escassa que rodeava a casa. Seu coração parou e depois bateu com toda a velocidade. Ela chegou a perder a força das pernas. Era seu pai bem ali na sua frente, vindo com um sorriso de boas vindas a ela. Seu pai que enterrou aos onze anos; que chorou e que sentia fortemente a sua perda desde então. Ali estava ele. Ele voltou à vida para dizer que perdeu a vida por sua causa e apenas isso.

Seus olhos arregalados e vidrados na figura que se aproximava, fez sua mente se emergir em paranoia. Seus nervos tremiam por dentro. Se chacoalhavam por baixo da pele. Vibravam como cordas instrumentais dedilhados por um músico perverso.

Com um sorriso no rosto, o homem abriu os braços ao alcançar Daniela e a envolveu num abraço. A moça pensou que desabaria ao ser tocada por ele, mas tudo o que o abraço do homem fez foi acalmar a sua mente. Ela soltou o ar preso dos pulmões e respirou, sem nem perceber que estava sem respirar durante todo o instante que o via se aproximando. Toda a onda se quebrou e a maresia brava do mar interno dela se desfez.

Os braços contraídos da jovem envolveram ele aos poucos. Até o cheiro era muito igual. Era outro perfume, mas o cheiro do corpo era praticamente o mesmo de seu pai.

Ela o apertou um pouco mais e enterrou com força o seu rosto no peito do tio. Ele não a soltou tão cedo. Permaneceu ali por algumas eternidades, até que um muro que ela tinha feito a sua volta para evitar mais dor fosse completamente destruído e ela sentisse que deveria ter feito aquilo tudo antes.

— Ele se orgulharia de ver que a filha dele se tornou uma linda mulher — Leandro comentou.

Uma gota quente de lágrima se soltou dos olhos dela e a camiseta azul do tio a absorveu.

Daniela foi para trás, quando achou que o abraço estava durando demais. Foi levando as mãos aos olhos para secar qualquer umidade por ali. Quando ergueu a cabeça, mostrou os olhos vermelhos.

— Benção — estirou as mãos unidas a ele e o homem a segurou.

— Que Deus te abençoe. — Ele deixou que um sorriso nascesse no rosto quando soltou da mão dela.

Ela sorriu de volta. Se sentia mais leve agora.

Sujo, imoral e inconsequenteWaar verhalen tot leven komen. Ontdek het nu