yellow;; capítulo único

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Eu ainda me lembro da sua voz de algodão-doce me dizendo para aguentar firme, apenas por mais um inverno. Você sabia que os meus planos, objetivos e sonhos nunca seriam concretizados, mas você continuava lá para mim. Sussurrando sobre amor em um mundo onde todos gritam, nós duas sabíamos que esses sentimentos eram melhores guardados dentro das nossas gavetas e pendurados de cabeça para baixo nos cabides. Em um armário de sonhos altos demais e esperanças muito pequenas, nós nos escondíamos juntas de tudo que poderia nos ferir. Sem leão nem feiticeira, apenas um guarda-roupa empoeirado e cheio de livros nunca lidos.

Nos conhecemos desde que éramos crianças, e já faz alguns anos que começamos a olhar pela janela e nos perguntar do quê a vida é feita. Porque agora nós não podemos sair para dar uma volta no seu carro enferrujado, mas se fôssemos apenas meninas qualquer caixa de papelão serviria como nossa imponente Ferrari. Eu teria você, e você me teria. Eu diria que seríamos nós contra o mundo, mas ambas sabemos que nessa luta nós não teríamos nem chance.

Quando escutávamos um som assustador, nós sabíamos com apenas um olhar o que viria pela frente. Crianças inocentes e assustadas correndo para se esconderem dentro do armário errado, empurrando os esqueletos para conseguir mais espaço. Diferentemente do nosso, esse guarda-roupa não possuiria apenas segredos bobos e livros ilustrados. Não, esse era diferente. Nessa caixa de madeira os segredos sujos e indesejados que ninguém mais queria repousavam e aguardavam o dia em que seriam descobertos. Amontoados e quebrados no meio como brinquedos velhos, abatorrando o guarda-roupa que pertencia os seres mais altos que vestiam gravatas elegantes e colares centenários. A curiosidade matou o gato, arrancou suas tripas e o escaldou para a janta. Nós aprendemos essa lição um tanto cedo demais e das formas mais estúpidas, porque é assim que crianças exploram o mundo. Como imbecis, se enfiando na primeira gaveta que encontram pela frente.

Querendo ser vista como um deles, só eu sei o quanto eu corri sem olhar para os lados. Explorando o mundo através da janela de uma sala de aula e tentando ao máximo provar para eles que eu era digna, eu fazia de tudo para ser valiosa sob seus olhos. É realmente interessante como a passagem das estações pode mudar as pessoas. O que antes era a minha pessoal primavera cor-de-rosa, se transformou no outono mais amarelo que meus olhos já presenciaram. E eu, que antes apostava corrida contra o relógio e fazia dos ponteiros os obstáculos do meu percurso, agora agarro a cada minuto com meus braços e pernas e os suplico que não se acabem. Porque depois do outono vem o imperdoável inverno, e você sabe bem de todos os meus medos que vêm junto dele. Gelo que queima como labaredas sobre a minha pele, lagos traiçoeiros que desejam me afogar e congelar. Gostar do frio não significa que eu confie no inverno, e você sabe que eu não aguentaria mais passar tanto tempo dentro do armário para me esconder das nevascas.

O seu próprio guarda-roupa pode ter apenas cachecóis e sonhos mal-planejados, mas o meu é um tanto pior. O meu, ele tem esqueletos.

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Mais uma drabble que eu escrevi pra minha melhor amiga, e que acabou perdida nos meus rascunhos. Te amo, Ana 🩵

YELLOW | saidaWhere stories live. Discover now