Único

2 1 0
                                    

20 de dezembro de 2032.

Todos nós estamos fadados a uma vida repleta de miserabilidade, e isso é tudo que eu sei. Todo o resto me soa falso e manipulado; os meus pensamentos não são meus e as minhas emoções não são minhas.
O que se faz quando se vive em um sistema que foi constituído, desde os primórdios, para te desintegrar e dissecar até que não reste nada de quem você um dia foi?

É exatamente assim que eu me sinto. Desde que o mundo é mundo, nos desfalecemos em verdades intrínsecas e inquestionáveis e matávamos pessoas como se nada fosse, porque acreditávamos estar fazendo isso por um bem maior comum.
Hoje questionamos esse bem maior comum, e continuamos matando como se nada fosse. No fim, pilhas de corpos são apenas pilhas de corpos, porque esses rostos não contam mais histórias e essas peles nada tem a oferecer além de carne, e isso é mais uma das poucas coisas que eu sei.

A natureza dos homens é-me de estranha complexidade, porque nada parece ter a oferecer além de uma comunhão de tragédias cíclicas. O tempo passa e a humanidade se firma e se prova como a única besta que realmente devemos temer; como se pode temer o que se é?
Me questiono como pudemos nos reconhecer como ratos e ainda assim continuar lutando pelo direito de cada um de nós possuir sua própria ratoeira¹, mas esse questionamento já não é bem mérito meu. Nada nunca é.

É difícil perceber o momento em que as coisas realmente mudam. O momento em que uma virada repentina acontece e nos deságua em uma maré contínua de questionamentos e confusão; o que aconteceu? O que nos aguarda? O que faremos? O que o governo fará? É algo bom? É algo mau?

A verdade, é que vivenciamos marcos históricos como telespectadores; figurantes alheios ao que acontece na trama principal e, como figurantes, nos contentamos em fazer nosso papel e receber um salário, mesmo que devamos permanecer no subsolo da impossibilidade de simplesmente compreender.

A revolução industrial foi um desses marcos; a revolução tecnológica também. Chegaram tão sorrateiramente, que não posso definir como exatamente se transformaram no que são hoje, sobretudo porque todo grande marco é composto de pequenas milhares de revoluções antagônicas.
Sinceramente? Como poderíamos prever o que ia acontecer? Acho que essa é a verdadeira pergunta.

Olhávamos para o marketing exarcebado como algo cômico e trágico; quem no passado poderia imaginar que hoje existiriam influenciadores panfletando QR codes para fotos deles nús em aplicativos reconhecidos por isso? Acho que sequer a mente mais insana e sórdida chegaria a tal desequilíbrio cognitivo.
Olhávamos para o cancelamento nas redes sociais como algo que nunca seria capaz de sair dela; e como poderíamos prever que algumas dessas pessoas não só foram canceladas, como também em alguns casos, demitidas de seus próprios empregos devido a repercussão que receberam?
Criticávamos aplicativos de vídeos curtos como psicologicamente prejudiciais; e quem poderia imaginar que, não só seríamos capazes de ainda assim os consumir exacerbadamente, como também mudar a nossa cognição cerebral?

A tecnologia avançou rapidamente. O capitalismo tardio avançou rapidamente. E, em ambos os casos, apenas deixamos passar desapercebido. Somos tão cruéis e ainda assim, capazes de desvios tão ingênuos, que devíamos nos considerar patéticos.

As guerras continuaram cada vez mais crescentes e rapidamente nos esquecemos da miséria na qual o Afeganistão afogou as mulheres de seu próprio país. As inteligência artificiais tomaram conta de todas as plataformas, sites e redes sociais possíveis, e rapidamente nos esquecemos que tínhamos pessoas reais com quem conversar. A crescente onda negacionista se alastrou pelo mundo como um vírus e lotou hospitais de corpos moribundos daqueles que não acreditavam na ciência, e nos esquecemos dos políticos responsáveis por esse genocídio coletivo. Os grupos conservadores passaram a ter cada vez mais influência em alguns países, e rapidamente fizemos questão de esquecer que a comunidade lgbtqiap+ era composta de seres humanos, assim como fizemos questão de esquecer que as mulheres também eram. Os grupos fascistas e neo-nazistas se provaram cada vez maiores, e esquecemos do sofrimento judio tanto quanto nos esquecemos da escravidão que torturou, dizimou e desumanizou milhares de pessoas negras durante tantos anos.

É fácil demais se esquecer das coisas, quando somos levados a acreditar que estamos mudando o mundo com uma hashtag clamando para que o Estado faça ele próprio o que é justo. É fácil esquecer que o Estado não quer justiça, quando somos levados a acreditar que uma condenação de cinco anos é o suficiente para mudar a situação catastrófica desse hospício a céu aberto que chamamos de sociedade.

É fácil demais esquecer do que realmente importa, quando nos sentimos impelidos por ímpetos egoístas e desejos devastadores; nunca tivemos tanto e nunca nós sentimos tão sós.
É fácil demais esquecer do que realmente importa, quando somos impelidos a acreditar que precisamos consumir, porque essa é a única forma de felicidade, vendida para cada um de nós em objetos diferentes; sejam roupas, livros, maquiagem, carros, apartamentos, plataformas de streaming, shows, pornografia e seja lá o que mais o capitalismo foi capaz de capitalizar.
Consumimos produtos e somos um produto; nossa dor é vista como lucro e isso nunca deleitou tanto aqueles que sempre estiveram acima de nós.

Dizem por aí que a esperança está nos proletas², mas se esqueceram de que nós já não temos esperança alguma no mundo.
Dizem por aí que se temos algo pelo qual viver, temos algo pelo qual morrer³, mas se esqueceram de que não temos nenhum dos dois.
Acordei hoje, como em todos os outros dias, com a impressão fria e oca de que não há solução para problema algum no mundo⁴.

Esperávamos tanto dos jovens, que nos esquecemos que eles também tinham o que temer. E temeram muito. E continuarão temendo. Porque o sistema é falho, corrupto, ganancioso e tirano. E eu sei que precisamos resistir aos tiranos⁵, mas eles também sabem disso e é claro que possuem mais armas do que nós; eles torturaram parte da população composta por aqueles que resistiram e fizeram outra parte da população acreditar que isso era justiça.

Aqueles que resistiram eram os inimigos da pátria. E quem é tolo o bastante para se preocupar com o destino de delinquentes infantojuvenis? E quem é que quer apoiar aqueles que estão contra o povo?

É irônico como não conseguimos perceber o quanto sempre estivemos contra o que realmente queríamos. E agora que temos carros de alta tecnología, extinguimos completamente o dinheiro de papel e passamos mais tempo dentro de jogos de realidade virtual do que fora deles, somos pessoais completamente ignóbeis. E em algum momento fomos algo além disso?

A televisão, as plataformas de streaming, as redes sociais e o próprio governo, nos encheram de certezas irreais e nos fizeram acreditar que mais vale um like do que um movimento e mais vale um vídeo do que uma intervenção violenta.
Nos diz que "somos todes iguais", mas assassinam jovens negros, estupram mulheres, retiram direitos de lgbts e tratam pessoas pobres como indigentes. Esmagam nossos sonhos, quem nós somos e o que verdadeiramente queremos, para no final do dia, nos convencer de que a culpa é nossa, que não nos esforçamos o suficiente, que não trabalhamos o suficiente e que não somos o suficiente.

É uma nova era e os andróides nunca estiveram tão próximos quanto agora. Me pergunto o que mais seremos capazes de inventar para nos destruir. Acho que no fundo somos todos, inevitavelmente, masoquistas.

Sinceramente, estou escrevendo tudo isso porque sei que existem muitas pessoas que pensam como eu. Elas só estão escondidas. Todas nós estamos escondidos, e vamos continuar assim, porque somos hipócritas. Eu mesma, que reclamo tão ferrenhamente de todas as mazelas que reconheço, seria eu capaz de fazer algo para mudá-las? Seria eu capaz de apoiar aqueles que mais sofrem repressão, quando me juntar aos que se omitem soa mais benéfico? Seria eu capaz de quebrar lojas e atear fogo em carros, quando criar uma hashtag soa mais confortável?
O cérebro está sempre nos enganando; criando narrativas, histórias e contos. E talvez ele prefira acreditar única e exclusivamente nisso, e é o que decide fazer. Algumas pessoas, talvez grande parte de nós, foi privilegiada com a incapacidade de lidar com a realidade como ela realmente é, e escolhemos permanecer naquilo que é ilusório.

Eu mesma, hipócrita que sou, escrevo isso para que as gerações futuras não se esqueçam dos horrores que vivenciamos, a troco de uma promessa frágil e tênue de conforto futuro, ao mesmo tempo em que rezo para que todas as minhas palavras se percam em uma ventania fria e nunca mais retornem. Me deito hoje em minha cama mais infeliz do que quando acordei, e me suborno com a falsa sensação automatizada de que essa é um realidade próspera e bela. Que essa é a minha casa dos sonhos. Que esse é o meu marido ideal. Que esses são os meus filhos perfeitos. E que essa é a minha pátria amada e que eu devo minha vida medíocre à ela.

Atividade escolar; Onde as histórias ganham vida. Descobre agora