2. Segunda

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Acabou que a missão foi concluída de forma absurdamente rápida.
Eles haviam sido designados para cuidar de uma fera aquática, outrora pacífica, que nas últimas semanas vinha atormentando os habitantes de uma aldeia situada às margens de um lago, tipo de ocorrência que vinha sendo comum nos anos que sucederam a derrota dos demônios que haviam escapado do submundo. Aparentemente, a influência da magia deles ainda circulava por aí.
Tudo que Noelle precisou fazer, foi utilizar seus feitiços para provocar a emersão da criatura e possibilitar que Asta a atingisse com a espada destruidora de demônios, libertando-a da magia e dos efeitos que provocaram seu comportamento anormal. E Finral, bem, além de levá-los ao local, ficou responsável por garantir com seus portais que Asta pudesse atacar a fera rapidamente de pontos diversos, além evitar que ele caísse no lago e se afogasse (se acontecesse, claro, Noelle poderia tirá-lo da água também).
O retorno foi ágil, com Finral brincando que, apesar de toda a sua evolução, estava servido de carona de novo.
Dada a ausência de complexidade da missão, os três concordaram que nem todos os participantes  precisavam comparecer para prestar relatório, o que permitiu que Noelle fosse resolver ver o assunto que a consumia desde cedo.
Era exatamente por isso, que ela caminhava agora pelo mercado negro da capital, após deixar uma loja de poções de aparência um tanto duvidosa.
Bem, não era como se ela pudesse visitar o hospital ou procurar um boticário conceituado para isso, certo? O tipo de ajuda em que estava interessada, certamente provocaria um escândalo entre os nobres caso fosse descoberta, desgaste que ela não queria sofrer.
Além disso, era quase um pacto mudo entre as nobres aventureiras procurar ajuda discreta no mercado negro, em situações semelhantes. Noelle não era a primeira e não seria a última.
Resolvida a questão — visto que ela havia ingerido a poção antes mesmo de sair da loja, sob o olhar irônico da velha balconista —, a jovem da realeza estava pronta para voltar para casa antes do fim da tarde e, assim, saiu do mercado negro e aguardou os dois colegas de esquadrão  no ponto de encontro que haviam combinado.
Eles chegaram pouco depois.
— Prontos? — Finral indagou, antes de abrir o portal.
— Oh, você poderia me mandar a Nean também, Finral-senpai? — Asta indagou. — Quero visitar Rebeca e as crianças — explicou, casualmente.
Noelle enrijeceu, automaticamente.
Uma vez que o relacionamento que mantinha com Asta ainda era um segredo, não era como se ela tivesse tido muitas oportunidades de expressar seu desagrado em relação a quantidade surpreendente de admiradoras femininas que o rapaz tinha. Por isso, em geral, Asta permanecia bem alheio ao ciúme que a corroía.
— Já que eu não tenho nada melhor para fazer, posso te acompanhar — ela se apressou em sugerir, a voz artificialmente aguda. — Não que eu me importe com o que faz, no entanto — ressaltou.
Asta apenas deu de ombros e, assim, segundos depois, os dois caminhavam lado a lado pelas ruas de Nean, com uma Noelle
muito ansiosa para terminar uma visita que ainda nem haviam começado.
E ela não tinha escrúpulos em jogar sujo para manter Asta o mínimo possível sob as investidas de rivais amorosas.
— Já que estamos fora, poderíamos pegar um quarto em uma pousada e passar a noite em um quarto em que não precisamos ter pressa de sair no meio da madrugada, para variar — sugeriu ela, o rosto completamente vermelho.
O brilho de expectativa que percorreu os olhos verdes vivos foi inegável, e tornou as horas que ela teve que aturar os olhares que Rebeca lançava sobre seu namorado enquanto ele brincava com as crianças, muito mais toleráveis. O fato de a feição da moça ruiva ter caído visivelmente nos momento em que viu que Asta não havia ido sozinho e também quando soube que ele não pernoitaria na casa dela, era apenas um bônus.
Claro, a presunção de Noelle foi somente até o instante em que ela percebeu que também não dormiria muito naquela noite.
Como de costume, eles pediram dois quartos, um duplo e um de casal, contando que as pessoas presumiriam, especialmente do teatro que encenavam toda vez que precisavam de hospedagem, que o duplo era para Asta e Liebe, e o de casal para que ela, um membro da realeza, pudesse desfrutar de mais conforto.
No fim, claro, Liebe se apressou e sumiu pelas portas do quarto duplo, ciente que seu portador não era o poço de paciência que aguardaria que alcançassem o quarto de casal, mas iniciaria suas atividades ainda nos corredores.
O resultado? O sol nascia e a jovem de cabelos prateados ainda não havia pregado os olhos.
— Você é um demônio! — observou, entre ofegos, enquanto Asta puxava o cobertor  para cobri-los.
— Não ouvi você reclamando antes — respondeu, de maneira arrogante, enquando a puxava para se aconchegar contra ele.
A garota suspirou, resignada.
Ela sabia onde estava se metendo, quando iniciou aquele relacionamento. Asta encarava qualquer atividade física como um louco obstinado, com mais disposição que qualquer um. Não havia porque presumir que na cama seria menos empolgado.
Poucas horas depois, ele a acordou para partirem, vestindo-se com a animação de sempre, enquanto ela mal reunia forças para levantar e amaldiçoava o sono que sentia.
— Eu vou descer na frente — anunciou, visto que se encontrava faminto e que sabia que a jovem não era exatamente ágil em domar seus cabelos prateados após uma noite como aquela — Quer que eu traga algo para você comer? — indagou, mas ela negou com um resmungo.
Levou cerca de meia hora até que Noelle finalmente conseguisse deixar o quarto, praguejando em razão do latejar em suas têmporas, apenas para deparar-se com a razão de sua dor de cabeça no corredor.
— Noelle! Você viu Liebe? — Asta indagou.
A jovem arqueou as sobrancelhas, reparando que o rapaz tinha a mão na maçaneta de uma das portas.
— Esse não é o quarto dele — avisou.
O semblante do usuário da anti-magia se contraiu em constrangimento.
—  Me confundi — alegou, apressando-se em largar a maçaneta.
A garota da realeza apenas murmurou em compreensão e não pensou duas vezes antes de seguir pelo corredor, em direção ao refeitório, sem se preocupar em deixá-lo para trás.
— Ah! Hei, Noelle! — o chamado de Asta fez com que ela parasse e se virasse para encará-lo. — Você viu o Liebe? — indagou, correndo pelo corredor para alcançá-la.
Noelle franziu as sobrancelhas.
— Você já me perguntou isso.
O rapaz crispou o semblante em confusão.
— Já? — indagou. — De qualquer maneira, ele também se atrasou para o café, então voltei para procurá-lo, mas ele não estava no quarto — anunciou.
— Talvez esteja dando uma volta — a garota deu de ombros. — Podemos esperar um pouco e depois procurá-lo — decidiu.
A busca, no entanto, não foi necessária, pois enquanto a garota tomava seu café da manhã — sendo acompanhada por Asta, que aparentemente não se incomodava em comer pela segunda vez —, Liebe juntou-se a eles.
— Nós vamos fechando a conta, enquanto você termina — Asta avisou para o parceiro de luta, que apenas grunhiu e continuou comendo, irritado por inevitavelmente ser o terceiro na roda das escapadas não planejadas do jovem casal.
Porque, bem, eles podiam esconder o relacionamento da maioria dos membros do esquadrão dos touros negros, mas não era como se pudessem fazer o mesmo em relação a ele, que apenas era obrigado a seguir a vida, fingindo não saber de nada.
Os dois deixaram o refeitório lado a lado, Asta tagarelando sobre coisas aleatórias de maneira animada e Noelle apenas resmungando em resposta, ainda tomada por seu mal humor matinal, mas estacaram assim que chegaram no balcão do hotel.
— Maldito, o que você está fazendo em Nean? — Gouche, que até então encontrava-se debruçado sobre o balcão, esbravejou assim que colocou os olhos em Asta. — Espero que não tenha tido a audácia de visitar meu anjo Marie — acrescentou, em timbre ameaçador.
Asta e Noelle engoliram em seco, ao perceber que o veterano dos espelhos também estava acompanhado de Grey e Gordon.
— Vocês estão se registrando? — a garota da realeza indagou, esperançosa.
— Estamos saindo — Gouche resmungou, em resposta. — Fizemos uma missão nos arredores ontem, então aproveitei para dormir aqui e passar mais tempo com a minha preciosa Marie — contou, enquanto encarava com a adoração a foto de sua irmã caçula, recém tirada do bolso do casaco. — E esses dois apenas continuaram grudados no meu pé, como sempre ficam, não importa o que eu faça — reclamou, ao passo que Gordon começou a murmurar algo que nenhum deles conseguiu compreender.
— Oh... — Noelle murmurou, empalidecendo ao notar que os números nas chaves que eles entregavam, eram de quartos vizinhos ao que ela e Asta passaram a noite.
Ciente que eles, como casal, se soltavam mais quando não estavam na base, o cérebro da jovem da realeza já começava a maquinar justificativas a respeito de possíveis barulhos estranhos que os colegas de esquadrão tivessem escutado, quando a pergunta de Grey a tranquilizou:
— E v-vocês? Vão se registrar agora? — esforçou-se para dizer no tom menos gritado possível e para manter as mãos cobrindo o mínimo possível de seu rosto.
— Na verdade, também estamos saindo — respondeu Asta, antes de depositar as duas chaves no balcão e explicar que decidiram pernoitar pois a visita a Rebeca havia terminado tarde. Não era o real motivo, mas também não era mentira. — Bem, nos vemos depois então! — uma vez que Liebe já havia retornado e se empoleirado em seu ombro, se despediu, com animação, enquanto Noelle apenas acenou discretamente para os três colegas de esquadrão que ficavam, os quais agitaram as mãos em resposta.
Em segundos, os três voavam pelos céus a caminho do QG dos Touros Negros, na espada matadora de demônios, Com Noelle e Asta se equilibrando em pé e Liebe em sua forma diminuta ainda acomodado no ombro do parceiro.
— Eu cheguei a pensar que eles poderiam ter ouvido a gente — a garota de cabelos platinados expressou sua preocupação.
— Não seria estranho, já que você não foi exatamente discreta na noite passada — brincou ele, abraçando-a por trás.
— E de quem é a culpa? — resmungou ela, tombando a cabeça sobre o ombro do namorado e fechando os olhos.
— De novo: não ouvi você reclamando antes. — Embora ela não pudesse vê-lo, sabia, pelo tom de voz, que novamente ele ostentava um sorrisinho convencido, do tipo que havia se tornado muito comum desde que ele havia descoberto o quanto realmente conseguia deixar uma maga tão poderosa como a namorada à sua mercê.
— Precisamos ser mais cuidadosos. Mesmo fora da base — murmurou ela, com voz sonolenta.
— Uhum — Asta resmungou em concordância, repentinamente muito interessado em salpicar o pescoço alvo da garota com beijos singelos.
— Falou o casal que está se pegando e local aberto e a centenas de metros de altura — a voz sarcástica de Liebe pontuou. — Não sou obrigado a testemunhar isso, aliás — acrescentou, o que fez com que os outros dois trocassem olhares divertidos e sorrisos culpados, mas retomassem a posições mais adequadas, com Asta apenas rodeando a cintura de Noelle com as mãos, a fim de firmá-lá no lugar.
Apesar da leve chateação pelo fim do abraço, Noelle suspirou feliz, visto que mesmo com a diminuição do contato, Asta ainda acarinhava suas costas com os polegares, deslizando-os para cima e para baixo, enquanto os demais dedos se ancoraram de maneira mais firme em sua barriga.
Não havia sido exatamente surpresa descobrir que a maior parte da linguagem de afeição de Asta, era composta por toques físicos, uma vez que, mesmo antes de namorarem, ele costumava apertar seus ombros ou suas mãos, sempre que se via orgulhoso dela. Provavelmente, era um reflexo da criação do rapaz e de seus irmãos em um espaço tão limitado.
Noelle, por sua vez, em seu crescimento acostumada apenas à frieza dos irmãos e dos parentes, bem como à distância que o enorme castelo real permitia que mantivessem, não estava habituada a receber, com tanta frequência, toques carinhosos, especialmente os despretensiosos.
No entanto, com paciência e uma cota considerável de lançamentos por esguichadas mágicas de água, Asta finalmente conseguiu fazê-la confortável com o contato físico constante, de modo que atualmente, se estivessem sozinhos, ele basicamente não a largava e, se estivessem em público, sempre procurava maneiras discretas de tocá-lá, seja com um aperto no joelho por baixo da mesa de jantar, ou um toque no ombro por trás do encosto do sofá.
— Como Liebe demonstrou, estamos ficando descuidados — comentou a jovem.
— Não precisaríamos nos preocupar em ser descuidados se assumíssemos que estamos juntos — Asta observou e sentiu Noelle congelar entre seus braços.
— Você quer assumir? — indagou ela.
O rapaz refletiu por alguns instantes.
— Naaa, ainda não — respondeu. — Mas acho que devemos nos preparar mentalmente para a confusão que vai ser isso. Embora talvez o fato de eu ser um dos favoritos para ser o novo Rei Mago, aplaque a ira da nobreza — conjecturou.
— Não completamente — lamentou ela. — Mas eu não estou exatamente preocupada com isso. As opiniões das famílias reais e nobres, não vão me influenciar quanto ao nosso relacionamento. Você sabe disso, não sabe?
— Sei.
— No entanto,  as críticas e atitudes odiosas virão, por isso aprecio o sigilo do nosso relacionamento, por atrasar   essa a dor de cabeça — refletiu.
— Eu com certeza terei mais chances de me tornar o Rei Mago com menos nobres exigindo a minha cabeça por ter corrompido uma donzela real — acrescentou o rapaz e Noelle revirou os olhos com as escolhas de palavras dele, embora concordasse internamente com a lógica apresentada.
— Isso nos traz de volta ao ponto de que devemos ser mais cautelosos, se não estamos prontos para assumir — asseverou a jovem de cabelos prateados.
— Ok. Vamos ser cautelosos! — exclamou Asta, antes de estalar um beijo na bochecha da namorada.
— Você não está ajudando! — entre risos, declarou ela.
— Perto de tudo que fizemos ontem a noite, querida, isso é um poço de cautela — argumentou em timbre convencido, arrancando uma exclamação indignada de Noelle e um grunhido escandalizado de Liebe.

Vamos Agir como se Eles não Soubessem Where stories live. Discover now